domingo, 21 de janeiro de 2024

A história de Chapeuzinho Rosa

 Por Rosa Amélia P. Silva

Professora de Língua Portuguesa e Literatura - IFB

Constante pesquisadora e estudante.

 

    A vida nos dá muitos presentes e nos reserva muitas surpresas.   Aprendi, mesmo sem ter consciência, ainda criança e duramente, que a filosofia freiriana faz todo sentido: para se compreender os sentidos das palavras, faz-se necessário aprender a ler o mundo, ou seja, “a leitura de mundo precede a leitura da palavra”. E compreender o sentido delas, às vezes, dói muito... Uma noite, dei por minha mãe caída no assoalho da cozinha com um tição na mão – que tinha a função de substituir uma vela; disso fui saber muito tempo depois. Ela estava morta. Não compreendia aquela situação. Ouvia a vizinha dizer: – D. Maria está morta... Como entender o sentido de MORTE, se não conseguia entender os fatos que ali ocorriam! Busquei no meu pobre repertório de palavras o significado tanto para aquela situação quanto para a morte. Não encontre


        A compreensão dessa palavra veio lenta e acompanhada de muita solidão, de perdas: não teria mais as orelhas de minha mãe para acariciar enquanto pegava no sono, não teria o canto quentinho da cama onde sempre adormecia, não teria mais as corridas nos trilhos da roça acompanhadas pelo ralhar dela, mudei de residência, minha vida mudou, quem dera pudéssemos mudar de mãe, talvez a falta que eu sentia não fosse tão profunda. Doeu muito. Senti muita tristeza. Chorei noites a fio de saudade de minha mãe, mas nem sabia que aquele sentimento poderia ser designado por “saudade”. Isso também não importava, só sentia. Essa foi uma das surpresas que a vida me reservou. Criei um mundo imaginário e, às vezes, penso que ainda vivo nele.


        Aprendi a compreender o mundo sob o rastro da morte, mas fui forte e sobrevivi. Muito esperta, conquistei minha madrasta – ou foi ela quem me conquistou – ela mais parecia uma criança, contava-me histórias tristes, de crianças abandonadas, de mães que morrem cedo, de gatas borralheiras, de filhos perdidos na floresta, de pessoas pobres que lutam pela sobrevivência, de madrastas que em nada se pareciam com ela. E, talvez porque houvesse perdido minha mãe, identificava-me com os personagens-heróis desses contos. Mas, ainda assim, considerava-me uma privilegiada, pois eu tinha muita gente por mim no mundo: minhas irmãs – um dos presentes que a vida me deu – que tanto lutaram para nos educar, a mim e a meus outros irmãos, nos valores da família tradicional mineira.


        E, mimada pelas minhas irmãs, construí um mundo novo. Caçula de onze irmãos e com uma irmã – que me chama de “irmãzinha do coração” – com uma relativa deficiência auditiva, dois anos mais velha que eu, fui assumindo a responsabilidade de ensiná-la a pronunciar e a entender as palavras. Aqui já me tornava professora. A minha vocação já era estimulada. E naquela época, eu profetizava o meu futuro de voraz e persistente estudante: ao me perguntarem o que queria ser quando crescesse, respondia alto e em bom tom: – Vou ser doutora, dona Rosa Amélia doutora... Exatamente dessa forma muito ingênua.


        Naquela época, as lendas faziam parte do meu imaginário, o Saci-Pererê, a mula sem- cabeça, o lobisomem, o curupira, as bruxas. Nossa!!! Essas histórias se concretizavam nas figuras enigmáticas do senhor Eliezer e do senhor Martins, vizinhos que, por serem velhinhos, para mim tinham uma aparência meio assustadora. Esse último, além disso, era curandeiro, fato que me levava a associá-lo a um bruxo. E havia também o Dengoso, anão desdentado que fazia romeu-e-julieta de uma rapadura e um queijo inteiros e que vivia com um embornal na mão, sempre dizendo que iria me levar com ele. Ah! Eu tinha pavor! Por causa dessas figuras reais, os causos contados pelo meu pai, na beira da fornalha, à noite, tornavam- se assustadores. Foi assim que me apaixonei pelo mundo encantado do faz de conta, das histórias mágicas e fantásticas as quais ouvia.


        O tempo da escola não chegou, eu cheguei até ele. Naquela época, as crianças ingressavam na escola aos sete anos. Eu, para acompanhar e ajudar a minha irmãzinha do coração, Inandina, fui para a escola um ano antes. Foi um tempo de deslumbramento. Que maravilha! Tudo era fantástico, a começar pelo caminho da escola que mais parecia a estrada da Chapeuzinho Vermelho de tantas árvores e trilhos que tinha, e assim eu me designava: Chapeuzinho Rosa. Aprender o bê-a-bá não fora difícil, não, pelo contrário... Foi fantasioso descobrir que, unindo aquelas pequenas letrinhas, eu podia construir castelos e representar as mais belas histórias que cresciam no meu coração, e outras que, pelos meus olhos, aprendia a ler pelas palavras. Aprendia tudo com muito encantamento e, simultaneamente, era professora, acompanhava, com zelo, a minha irmãzinha do coração. Pelo menos assim foi durante o primeiro ano de escola. 


        Naquele tempo a professora, quem sabe, para suavizar a idéia que tinha de ser malvada, construída ao longo da existência da palmatória, passou a ser chamada de tia. Não entendia o parentesco, mas compreendia o afeto e me deleitava nas histórias contadas pela minha primeira querida Mestra, outro presente que a vida me ofereceu. Sou do tempo da tia, da professora Tia Bezinha, assim era chamada a minha querida professora que me acompanhou por três anos e me ensinou a ler as palavras, o mundo, a imaginar e a escrever histórias bonitas.


        Foi tia Bezinha quem primeiro despertou em mim o sentimento consciente do ciúme, queria aquela professora, seus livros, sua atenção só pra mim e por isso brigava com o mundo, queria ser a melhor em tudo só para agradá-la. Ela despertara em mim o sentimento da competição e só agora tomo consciência disso!!! Mas competir pelo amor dela era tão bom... ficava triste quando eu perdia, também não podia ganhar sempre, afinal... ela era tia de mais uns trinta... assim impacientes pelo seu amor e sedentos  dele.


        Lembro-me do meu primeiro livro e pelo qual fui alfabetizada, não foi uma cartilha, era um livro lindo, todo colorido. E que fazia parte do meu repertório, do meu mundo, do meu horizonte de experiência, aprendi a ler identificando a mim e minha irmã nos personagens do livro: Bidu, Zecão, Fofinho e a onça pintada. Bidu era inteligente, mas fisicamente fraquinho, precisava sempre de proteção – eu; Zecão era forte, protetor da bicharada da floresta Inandina, minha irmãzinha do coração, que me defendia dos conflitos criados nos recreios da escola; Fofinho – às vezes eu, às vezes minha irmã – a depender das circunstâncias. Aquela onça era o meu temor, mas era também a minha paixão. Lia cada capítulo do livro, soletrava cada palavra, buscava entendê-las, esperando, a cada lição aprendida, a derrota da terrível e maligna onça pintada.


        Um dos capítulos que mais me marcaram foi “A Ponte”, já faz tanto tempo, mas ainda me lembro: havia uma ponte enorme, pela qual deveria passar toda a bicharada da floresta em busca de alimento. E era ela ponto estratégico para a onça pintada atacar. Ali, Zecão – que era um bode forte – enfrentou e derrotou a onça pintada; dando-lhe uma chifrada e derrubando-a no rio, libertou toda a bicharada das ameaças da ex-invencível Onça Pintada. As imagens eram muito sedutoras, eu ficava horas sobre o livro saboreando a leitura que fazia delas. Criando e recriando histórias na minha imaginação.


        Quão significativa era aquela ponte! Era a passagem para outros tempos, os tempos da leitura da palavra. Eu me deliciava nas histórias dos muitos livros, quase sempre emprestados pela Tia Bezinha. Foi assim que me apaixonei pelos livros.


        Dona Bezinha era um poço de candura e ao mesmo tempo enérgica com seus alunos. Hoje, quando leio Paulo Freire, só consigo me lembrar dela. Ela era totalmente adepta à teoria freiriana, e olha, desconfio que, lá no interior de Minas, naquela época, não se reconhecesse a grandeza desse pedagogo e professor, sua fama e textos ainda não tinham chegado por lá. Tudo na minha primeira professorinha era movido pela paixão e pela vocação. E ela foi, durante três anos, o meu estímulo para a leitura e meu modelo como profissional. Veja só, o ser humano é composto pelo outro, eu sou o reflexo do outro; dona Bezinha. Sei que ela faz parte de mim e eu sou parte dela. 


        Terminei o primário no Grupo Escolar Dr. José Pacheco Pimenta, e ingressei no Ginasial. Cheia de expectativas porque iria aprender uma língua estrangeira; iria ter várias professoras, todas, senão iguais, pelo menos parecidas com a Tia Bezinha. Nossa!! Como eu seria feliz com muitas Bezinhas na minha vida. Uma nova surpresa: decepção! Não encontrei nenhuma Bezinha. Imaginei que o processo de aprendizagem de uma nova língua fosse igual ao meu processo de aquisição da leitura. Frustração pura, as aulas de inglês eram um horror.


        E as aulas de Português, o que era aquilo que até hoje não posso compreender! Meu Deus! Que choque tamanho! Sair de um livro todo colorido, com o qual havia aprendido a ler, que apresentava histórias as quais alimentavam a minha imaginação, para cair num livro de capa roxa, intitulado “Comunicação e Expressão”. A começar pela cor da capa que era horrível, o livro, na verdade, não comunicava nada, era composto de fragmentos de textos que não faziam parte da minha realidade e de um monte de lições de gramática do tipo: faça análise morfológica dos termos destacados, sublinhe os substantivos da frase, classifique os adjetivos, identifique os advérbios, reescreva a frase mudando o verbo para o pretérito perfeito do subjuntivo, faça a análise sintática dos termos: verbos transitivos diretos e indiretos, sujeitos etc., identifique e classifique as orações subordinadas. Ninguém havia me apresentado essas palavras, ninguém havia me explicado o que elas significavam. Para dar conta daquilo tudo eu teria que ser uma doutora em nomenclatura gramatical. Sentia-me desolada, não aprendia nada, não via significado em aprender. O que havia aprendido – compreender e significar – já não sabia mais. E tinha professor que dava questionário de 50 questões e nós, os alunos, tínhamos que decorar tudo para, na prova, demonstrar que aprendemos. Eu? Só decorava a metade. Se caísse na prova aquela metade, eu me dava bem, caso contrário, só me danava. Fui ficando esperta e me adaptando ao sistema, decorava sempre a metade, mas escolhia metade da primeira metade e a metade da segunda metade, assim, não era um espetáculo de aluna, mas conseguia, quase sempre, acertar 50% das questões – pela lógica das probabilidades – e tirava nota para passar. Que lástima!


       Infelizmente, não tenho boas lembranças do Ginasial, a minha professora de língua portuguesa, que mais parecia um sargento, não me dava trégua, reclamava de minha falta de atenção quando percebia que estava viajando no mundo da fantasia durante as suas horrendas aulas de gramática pura. A ela, PT saudações. Argh... E quando ela ficava de pé, perto de mim, ela era tão alta que eu ficava abaixo da sua cintura. Olha, assim... literalmente, eu me sentia um c... nas aulas dela, tanto pela estatura que me colocava abaixo do seu bumbum quanto pelo sentimento de incompetência diante de tanto conhecimento inútil para meu crescimento. 


           A escola, nessa época, foi um terror; minto, porque o terror estimula a imaginação. A escola, nesse período, me anestesiou. Não lia nada por indicação ou estímulo da escola, nada mesmo. Durante o período de aulas, a minha euforia era para que a preleção acabasse logo e eu pudesse jogar queimada com a turma. Ainda bem que existe o mundo, que, segundo o poeta, é vasto! E pode ser lido de acordo com as nossas expectativas. Fora da escola eu lia muita história em quadrinhos, Walt Disney: Tio Patinhas, Pato Donald, Margarida, Maga Patalógica – essa eu adorava, o professor Pardal, nossa! Que hilário, os irmãos Metralha, eu adorava os seus planos tão arquitetados e malsucedidos. Li também muitas histórias do tipo Chuta o Joãozinho pra cá, cujo relato sempre tem algum órfão ou uma madrasta bem má. Não seduziram os livros da série Vagalume: A ilha perdida, O rapto do garoto de ouro, li-os porque a escola obrigava, mas os julgava tão sem graça, sem o tal do melodrama.


        Engraçado, entre tantas histórias infantis, lia, às escondidas, Adelaide Carraro, mas não é o que todo mundo lia normalmente não, o livro O estudante, que é o mais famoso dela, li muito tempo depois, o que eu lia eram as histórias horripilantes de sexo e morte... Nossa, como eu achava tudo aquilo feroz, ferino, afinal, já não era mais uma criancinha, outros interesses, euforias... tornava-me uma adolescente... descobria novos mundos e ler o proibido era muito mais excitante. E como sou apaixonada por histórias de órfãos, abandonos, descobri Capitães da Areia! Maravilhoso, eu, adolescente, com meus conflitos ainda de criança, lendo Jorge Amado, que mistura tudo que a Bahia tem de bom e ruim em suas deliciosas e envolventes narrativas. Os livros despertavam em mim novos sentimentos, alguns desconhecidos, mas que me deixavam eufórica.


        Li, nessa época, O crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz, história que me fez questionar paradigmas e modelos sociais. A conduta de Amaro em relação à Amélia e ao sacerdócio, de certa forma, me chocou e ao mesmo tempo me despertou para a vida real. Lembro que li todo o romance do Eça de Queiroz na expectativa de que o padre se redimisse e assumisse o compromisso com Amélia, de que agisse movido pelo coração. Não, ele não podia, tinha compromissos sociais mais importantes que o do amor. Minha alma ardia de raiva de Amaro, e ao mesmo tempo alimentava uma esperançazinha de que ele descobrisse que o amor vale a pena.


        Veja quanto fui subversiva, Eça de Queiroz e Jorge Amado eram escritores, naquela época, considerados inadequados para a leitura na escola e para moças de família, devido ao estilo feroz e crítico à vida provinciana e ao comportamento do clero, que mais se revela como denúncia. E eu, uma provinciana, de família tradicional mineira, com espírito romântico, devia ler outras obras mais amenas e que fizessem transbordar o meu coração, não aquelas que o dilacerassem. Apesar de me revelar o mundo e a sua cruel realidade, essas leituras só aguçaram a minha sensibilidade e talvez tenham me tornado mais romântica; reforçaram a minha crença na paixão e na poesia. Lembro-me de que ficava horas a folhear a coleção de Dante Alighiere, que minha irmã havia comprado para sua mini-biblioteca que hoje me pertence. Gostava de passar a mão sobre aquelas páginas cheias de versos, estrofes. Imaginava o quanto era inteligente aquele autor, lia versos, pulava páginas, lia, achava dificílimo, chegava a imaginar que era escrito em outra língua. E assim voltava para minhas leituras: Júlias e Sabrinas, histórias de conflitos amorosos, mas que, de modo geral, terminavam com final feliz, alimentava assim a minha alma                    romântica.


        A música contribuiu muito para a minha paixão pela poesia, ouvia desde a caipira – de raiz – influência de meu pai; a sertaneja, influência de irmãos; a bossa nova e MPB, influência de minhas irmãs; até o rock, por ser um estilo com o qual me identificava. Isso não podia ser diferente. Numa família enorme igual à minha, o ecletismo musical é uma realidade. E eu, por ser a mais nova, transitava entre todos os estilos e ritmos e, talvez, por isso hoje ouço e curto todos estilos de música sempre com muito respeito, independentemente de ser Tonico e Tinoco, Roberto Carlos, Caetano, Reginaldo Rossi, Raul Seixas, Beatles, Titãs, seja lá quem for. Tão logo começou o segundo grau, que, à época, era profissionalizante, apaixonei-me pelo meu professor de Literatura. Não gostava da obrigatoriedade das leituras, mas ficava embevecida com as aulas daquele professor que de alguma forma me seduziu. Ouvi-lo falar de José de Alencar, Machado de Assis, Aluízio Azevedo, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Bernardo Guimarães era algo que enternecia a minha alma, tornei-me uma escritora de contos. Escrevia histórias curtas de amor proibido, as quais não deixava ninguém ler. Naquela época, para mim, não sei se pelo estilo, pela linguagem tão distante da minha ou pela obrigatoriedade, ler Iracema fora um suplício; A moreninha, quase morri de tédio. Em Lucíola, senti certa rejeição de início, mas me apaixonei pela personagem feminina e julgava Paulo, o galã da história, um crápula, alimentava aquela já dita esperança de que ele vivesse a sua paixão tão condenada pela sociedade, mas que fazia ruírem a sua alma e o seu coração. 


        Mesmo sem conhecer os 10 mandamentos do leitor, escritos por Pennac, já era uma adepta deles: Todo leitor tem o direito de escolher o que lê, tem o direito de pular páginas, e confesso que nesses dois primeiros livros pulei inúmeras páginas... Leio um livro se gosto, se a leitura não me atrai, não continuo. A leitura deve ser algo cativante, deve revelar-se necessária à vida do leitor, tão necessária quanto o alimento, o sono. E, infelizmente, pela condição de nossa alma ou pelo estilo do texto, muitas vezes alguns deles não nos agradam, mas fazer o quê? Procurar ler aquilo de que mais gostamos, para depois ler aquilo de que necessitamos, pulando páginas , se for preciso.


          O meu curso médio, como já disse, fora profissionalizante, escolhi o Magistério, porque sabia que tinha nas veias e no coração a alma de professora. Naquele tempo, ao estagiar, pintei e bordei na escola. Era uma exímia contadora de histórias, cativava os estudantes contando causos e contos aprendidos na minha infância. E não apenas contava. Lia histórias para eles, e muitas vezes as representava. Fui Chapeuzinho Vermelho, Dona Baratinha, Branca de Neve, até o macaco rebelde da história O dia em que o Jacaré comeu a lua eu representei. Nossa! Foi um tempo de muita alegria na minha alma, adorava sentir os olhinhos brilhando dos estudantes quando me viam no alto do pátio da escola que servia de palco. Eu representava da tragédia à comédia sem perder o espírito. E para mim, isso tudo foi brilhante, porque toda essa trajetória se realizava na escola onde eu havia estudado as séries iniciais. Era a confirmação de um sonho que Dona Bezinha despertara outrora. Eu me tornava professora. E enfeitava-me de reflexo de Dona Bezinha, revivia o passado mas no papel de professora. 


               Para contar minha estória de leitora, minhas Primeiras Estórias, lembro do Meu pé de laranja lima, que enfeitou toda a minha infância, fez parte dos Incidentes em Antares de minha adolescência. Vivi feliz como Clarissa. Em Cinco minutos, encontrei O mulato, por quem me apaixonei. Tornei-me uma Senhora, vislumbrando uma vida Perto do coração selvagem. E para meu desconsolo, vi-me no Quarto fechado. Vivi minhas Vidas secas. Não fui uma Viuvinha, mas me tornei uma mãe órfã de filha. Vi-me como Dom Casmurro, desenxabida. As veredas de minha vida, tortas em Sinos da Agonia, com medo de que me tornassem Lucíola, sentia-me mais A pata da gazela. Com Aprendizagem ou O livro dos prazeres, descobri o Romanceiro da Inconfidência, das minhas puras confidências. Nas veredas dos Sertões, busquei, várias vezes, por Macunaíma; sapo que virasse príncipe, mas só encontrei O pequeno príncipe que virou sapo ou, quem sabe, O alienista. E para que minhas Memórias não viessem a se concretizar póstuma(s)mente, em Onze minutos, resolvi torna-me uma Ana Terra, brava e guerreira para defender minha prole, Thiago e Marcus. Na minha Sagarana, não tive um Triste fim como o de Policarpo Quaresma. O ponto cego fez-me crer em São Bernardo que me retirou da Angústia, uma Jangada de pedra levou-me por outros caminhos que me fizeram encontrar outras veredas da minha vida e a realizar muitas travessias em Rosinha, minha canoa. No meu Grande sertão: há ricas veredas, minhas todas, muitas. O ensaio sobre a minha cegueira fez-me sair em busca do meu Conto da ilha desconhecida. E nA hora da minha estrela, descobri, na Inocência de minha alma, a Água viva da vida que tinha para reconstruir, voltar a sonhar com a menina que tinha Fita verde no cabelo e que ainda existe dentro de mim. Que um dia foi Chapeuzinho Vermelho, Chapeuzinho Amarelo ou Rosa; quem sabe, ainda é! Não tenho o Amor de Capitu e não quero tê-lo. Nas minhas leituras, minhas todas, nunca aceitei muita intromissão, muito romântica, lia e sonhava com o amor. E hoje estou a escrever o Memorial do meu convento, na expectativa de encontrar O bom ladrão que roube meu coração – O homem que seja para mim, assim como eu serei para ele como serei para ele A mão e luva para construirmos o nosso Admirável mundo novo e juntos escrevermos os meus Retratos de mulher. No era uma vez d´Estas estórias, embarquei inúmeras vezes no meu Sentimento de mundo, arriscando-me a ter Cem anos de solidão e a ter que contar sob o Relato de um(a) náufrago(a) os anseios do meu Corpo de Baile. Encontrei pessoas que me mostraram O espelho, onde pude ver que não havia cometido nenhum Crime e não merecia castigo, e por isso não contarei as Memórias do cárcere; pessoas que me fizeram sentir que a luta com muito Suor é sempre reconhecida. Ergui a cabeça e continuei em busca de meus sonhos, como se fosse Alice no país das maravilhas ou Don Quixote, para não me tornar igual aos Últimos, não precisar de um Juiz de paz na roça, na cidade ou em qualquer lugar e me livrar de ser simplesmente Restos mortais, que nunca serei O(a) pagador(a) de promessas.

domingo, 1 de outubro de 2023

Onde andará?


Que canção primorosa!!!!

O conflito existencial humano presente:

Onde está o meu amor
Paulo Ricardo

Onde está meu amor
quem será com quem se parece.
Deve estar por ai,
ou será que nem me conhece.
Onde andará o meu amor
seja onde for, irá chegar.
Onde está o meu amor
que será que ele faz da vida,
deve saber amar e outras coisas que Deus duvida.
Corre se esconde, finge que não, jura que sim
morre de amores, aonde, longe de mim.
Onde está o meu amor
leve envolto de tanto mistério
deve saber voar
deve ser tudo o que eu espero
onde andará o meu amor,
seja onde for eu sei que vai chegar....
Vai chegar....



O lugar dos amores que não chegam é não chegar mesmo... porque amores assim são epifanias...
A canção é linda mesmo...
Esta é a função da poesia: palavrear o inapreensível.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

O que aprendi
DF Junho/2021
Fernando Grossi
Para a professor Rosa Amélia Pereira da Silva que muito me ensina

Com o Rosa aprendi
que a palavra se veste de palavras
para encantar o sentido.
E cria, com gibão de couro,
vestido de princesa.

Com a Rosa aprendi
que a palavra ensina e apreende.
Que a poesia da palavra não é
seu significado físico, pétreo,
essa pedra que se leva no peito.

Com os rosas aprendi
que a palavra nasce antes
de ser pensada ou dita.
Nasce do fazer do povo
em seu destino de ser agente.

sábado, 12 de junho de 2021

Resenha: Para ler Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa

ROCHA, Luiz Carlos de Assis. Para ler Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Editora Páginas, 2020.

 


        O livro Para ler Grande Sertão: Veredas, publicado pela Editora Páginas, de autoria de Luiz Carlos de Assis Rocha, revela-se um primor para aqueles que gostam de estudar, formal ou informalmente, a linguagem. Explicarei as razões. Antes, devo apresentar o autor: o Dr. Luiz é professor da Universidade Federal de Minas Gerais, atua, especificamente, na área de Linguística e realizou, na área em que ensina, um trabalho hercúleo a partir de Grande Sertão: Veredas, obra  que se tornou fonte  para as suas pesquisas relacionadas à linguagem. Ele uniu, na sua pesquisa, linguística e literatura. E realizou uma escolha acertada, pois o romance Grande Sertão: Veredas é um grande laboratório tanto para estudos de questões literárias e de questões linguísticas, quanto análises de questões filosóficas e sociológicas.

O livro, com 384 páginas, demonstra todo o empenho do seu autor em destrinchar a obra sobre a qual ele se debruçou como deve proceder um bom pesquisador. Está dividido em três partes. No preâmbulo, o autor realiza uma reflexão preliminar sobre a linguagem de João Guimarães Rosa, sobre o estilo da escrita rosiana, que tem traços da oralidade, mas desta se distingue por sua singularidade e seu caráter criador. Ainda no preâmbulo, o autor também discute a forma como Riobaldo se apropria da linguagem e faz dela uso para expor seus conflitos existenciais.

 Na primeira parte, ele faz uma descrição dos vários fenômenos da linguagem e recursos linguísticos empregados na obra por João Guimarães Rosa. Entre os metaplasmos, há apontamentos de síncopes, aféreses; entre as figuras de linguagem, muitas outras ocorrem no livro, mas destacam-se os aforismos, os neologismos, os dequeísmos, as inversões, as antíteses, as prosopopeias, o ritmo e as rimas internas, próprias da prosa rosiana. É importante ressaltar que esses apontamentos aparecem explicados teoricamente e exemplificados à luz do romance do Rosa, com citações específicas. Esta é uma das razões que aponto como valorosa no livro. Para o estudante de Letras que deseja compreender os fenômenos linguísticos de uma língua, o estudo é uma leitura necessária e proveitosa, revela-se um profícuo observatório.

Além dessa razão, vale destacar a importância da obra de João Guimarães Rosa como uma reunião de fatos linguísticos inusitados e repletos de poesia. Ler Grande Sertão: Veredas pode parecer difícil, mas, à medida que se mergulha na obra, vai se descobrindo o maior intento do autor: desvelar, por meio de uma linguagem própria, o mundo que está cristalizado na linguagem convencional. Rosa, na verdade, ao escrever, burila as palavras e as frases, com estrutura, às vezes, até extravagante, e tenta revelar a beleza poética natural presente nas palavras. A beleza que se perde pelo uso convencional da linguagem.  Como ele mesmo diz, é preciso “tirar a poeira das palavras”. Este tirar a poeira refere-se à necessidade de reavivar o brilho poético que as palavras apresentam no seu sentido natural.

E por que trago essa reflexão relacionada à obra do Rosa? Porque, ao ler o texto do professor Luiz, vislumbrei este mesmo intento, na segunda parte do livro. Ele, página a página, desvela para o leitor comum os sentidos ocultos das palavras, das expressões, das frases empregadas por João Guimarães Rosa em seu romance. O professor, com muito esmero, abre, para o leitor, caminhos na floresta do Grande Sertão: Veredas, abre clareiras para o entendimento da palavra poética rosiana. Este caráter pedagógico da proposta do professor Luiz, página a página, traz explicações esclarecedoras que mostram tanto o sentido convencional quanto o sentido poético da linguagem, este que vai sendo consumido e esquecido pelo contínuo uso das palavras.

O estudo do professor Luiz, na verdade, atende a dois públicos: o estudante de Letras, que, por uma exigência curricular, precisa estudar e compreender os fenômenos da linguagem; e o leitor comum de literatura, que pode se sentir desencorajado a ler a obra de João Guimarães Rosa, por julgá-la difícil de ser lida. E mais, ler o texto do professor Dr. Luiz pode encorajar o leitor neófito a mergulhar na obra mais importante da literatura brasileira do século XX. Fica a dica de leitura!


terça-feira, 24 de março de 2020

Linguagem, mito e contos de fada: intrínsecas relações



O encantamento original da linguagem, do mito e dos contos de fada.


Por Rosa Amélia Silva

Resumo: Objetiva-se demonstrar, nesta reflexão, que o princípio do mito, do conto de fadas e da linguagem tem a mesma origem: a relação subjetiva do homem com o mundo. Tanto a origem da linguagem, a origem do mito quanto a origem do conto de fadas se estabelecem a partir do maravilhamento do homem com o mundo. Nesse sentido, ao estabelecer essas relações, podemos concluir que a efabulação é uma variável constante na vida humana, pois é a partir dela que o homem é capaz de maravilhar e criar a palavra que nomeia, o mito que explica o mundo e o conto de fada que explora a fantasia.


Para estabelecermos relação entre o maravilhamento da origem da linguagem, do mito e do conto de fadas, é preciso começar por aquilo que parece mais antigo: o maravilhamento que deu origem à linguagem. Para Benjamin (2017), existem muitos tipos de linguagem, mas pensar a linguagem verbal, para ele, é retomar o momento original da criação, pois “a língua, ou a linguagem, significa o princípio que se volta para a comunicação de conteúdos espirituais” (49/50). Tais conteúdos espirituais, para Cassirer (2011), é o que constitui as formas simbólicas.
A partir de Rousseau (2015), podemos compreender que a palavra nasce do encantamento, do maravilhamento do homem com o mundo. Por isso, a palavra é sempre metafórica, simbólica, mesmo quando usada no sentido mais objetivo. Rousseau considera que, se não fossem os sentimentos humanos, o homem talvez não tivesse desenvolvido a linguagem tal e qual ele a desenvolveu. João Guimarães Rosa também acreditava que o princípio da linguagem apresenta um caráter alquímico. Nessa perspectiva,  o nascimento da linguagem (da palavra em si) está ligado à expressão do sentimento humano e não a expressão das necessidades físicas, conforme se costuma pensar. Destaca-se que tal sentimento se relaciona ao encantamento do homem em relação aos fatos do mundo, a partir deles constituem-se as formas simbólicas.
Rousseau conjectura que “não foi a fome nem a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera que lhes (dos homens) arrancaram as primeiras vozes” (2015, 104). Para suprir a fome e a sede, o homem pode usar a linguagem corporal a partir da qual se realizam ações que provejam tais necessidades básicas. Tal especulação conduz para a ideia de que a linguagem promana da necessidade de expressão de subjetividades: das paixões humanas, “não se começou (a linguagem) pelo raciocinar, mas por sentir” (idem, 2015, 103), pelo encantar-se. Assim, toda linguagem, por mais social e convencional que seja, está ligada a sentimentos, a afetos, nas palavras de Benjamin (2015) e de Rosa (2006), às substâncias espirituais, ou seja, compõem formas simbólicas. Por isso, a linguagem e a sua compreensão sejam consideradas questões metafísicas porque estão associadas ao vir-a-ser do homem para além da sua condição física.
Por isso, cremos que o cerne de toda linguagem é a força do fazer, do grego poen, de que deriva a poesia. Assim, a poesia, os sentimentos e o encantamento estão intrinsecamente ligados. Antes de ser a expressão de sentimentos, a linguagem está associada ao desejo de comunicar ao outro o que se sente espiritualmente. Observa-se, dessa maneira, que a poesia, enquanto “fazer”, está ligada à experiência subjetiva, à capacidade de experimentar e revelar o sentido da vida, dos fatos, das coisas. Podemos especular que a conotação seja o princípio básico da linguagem humana, porque, ao pensar a palavra para nomear algo: ser, coisa, ação etc., o homem o faz sempre por analogias mobilizadas pelas paixões espirituais. Nas palavras de Benjamin (2017, 54), ao nomear as coisas, o homem comunica, pela língua, “sua própria essência espiritual”, “que lhe corresponde” (idem, 52), ou seja, os seus encantamentos e os seus encantos. As analogias são sempre metafóricas mesmo que objetivas, porque elas não são as coisas, mas representam as coisas, tal representação é análoga, simbólica.
O fazer linguístico nasce a partir dessa construção metafórica. Isso justifica a ideia de que a linguagem promana da e a poesia. Conforme informa Jolles (1930, 183), “a poesia é aquilo que passa em estado de pureza e sem alterações do coração para as palavras (sensibilidade e raciocínio); por conseguinte é algo que brota incessantemente de um impulso natural e é captado por uma faculdade inata”, logo podemos compreender que a poesia é o princípio da própria linguagem e, por conseguinte, da experiência que se torna memória coletiva e cultura. Poesia, experiência e cultura são intrínsecas ao ser humano, que, ao contar o que se vive, na tentativa de encontrar e atingir o outro pela comunicação, o faz também pela linguagem. “A poesia é a que maior afinidade tem com a inteligência e a que mais se aproxima do objeto da atividade teórica do espírito” (NUNES, 2016, 24). E considerando Cassirer, a poesia é a eclosão das formas simbólicas, dos conteúdos espirituais.
Tomando como ponto de partida a origem do mito, numa perspectiva mito-poético-literária, percebe-se que ele está ligada à essência da humanização. É a necessidade de expor a essência sentimental – espiritual/metafísica – que constrói socialmente o humano. O fazer poético está relacionado à experiência altruísta da humanização, dele nascem as formas simples, porque iniciáticas, de expressar um acontecimento, que estão ligadas à expressão da subjetividade humana, aos diversos sentires do ser que se humaniza ao se expressar pela linguagem: as narrativas de caráter oral, entre elas o mito e outros tipos de narrativas que exploram o fantástico, por exemplo, o conto de fadas.
A ascensão intelectual do homem faz com que ele avance para a socialização. Tal ascensão é marcada pelas formas tradicionais de narrar ou contar o mundo. Esse narrar o mundo demarca a origem da narrativa. No processo de ideação de uma palavra-conceito, da elaboração da palavra (sonora) que o represente, da exposição dessa palavra apontando para um conceito e para algo no mundo real, acontece o momento mágico da compreensão entre os seres humanos por meio de um código elaborado de forma simbólica: o mito. Nas palavras de Cassirer (2011, 19), “a mitologia, no sentido mais elevado da palavra, significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento e isto em todas as esferas possíveis da atividade espiritual”.
É um processo fantástico, que gera êxtase entre os homens, derivado do maravilhamento. Desse sentimento,  desenvolvem-se, simultaneamente, a linguagem verbal, a comunicação pela palavra e a criação dos mitos. A palavra não é o mundo, mas representa o mundo e o representa de forma subjetiva numa coletividade. É um processo metafísico. Por meio da palavra o homem tenta expressar aquilo que está no princípio da sua humanização. É um processo alquímico. Por meio da palavra o homem se humaniza, se socializa e transcende a si mesmo por meio da fantasia que, no princípio, compunha o real-mito-mágico. É o princípio da racionalização por meio da palavra.
Tolkien mesmo afirma que
A Fantasia é uma atividade humana natural. Certamente ela não destrói a Razão, muito menos insulta; e não abranda o apetite pela verdade científica nem obscurece a percepção dela. Ao contrário. Quanto mais arguta e clara a razão, melhor fantasia produzirá (TOLKIEN, 2013, 36).
A palavra é – simultaneamente – a mais antiga e mais atual tecnologia elaborada pela mente humana. E a mais encantadora, porque a palavra mesmo sendo objetiva é carregada de analogias, metáforas, subjetividades e simbologias. Cassirer afirma que a palavra – linguagem – constitui a estruturação sintética da consciência, pelo mundo da intuição, inicialmente o mundo dos sentidos ou das percepções sensoriais, é “uma maneira específica do espírito na sua atividade de criar e formar” (CASSIRER, 2004, 137). Baseado em Kant, Cassirer descreve o fenômeno da racionalidade humana: da experiência sensorial que garante a apreensão dos sentidos das coisas no mundo para o processo de representação dessa apreensão. O ato de representar, na mente, o mundo, os fatos, os objetos, revela, por si só, um ato de racionalidade.
Kant (apud Cassirer, 2004) põe em xeque as perspectivas racionalista e empirista para defender que todo conhecimento é racional até mesmo os advindos da empiria. Nesse sentido, o ser humano é, antes da experiência, um ser racional e por isso mesmo é capaz de racionalizar a experiência. Os conteúdos que o homem consegue racionalizar é de ordem empírica. O mundo se mostra ao homem que o conhece a partir dos fenômenos nos quais ele se envolve. Nesse sentido, apesar de parecer que há supremacia da razão, ela é alimentada pela experiência, ou seja, é o homem que atua sobre o mundo e não o mundo que atua sobre o homem. Cassirer (2004) amplia essa visão de Kant e afirma que o homem é simbólico, porque ele é racional, ou vice-versa, ele é racional porque consegue simbolizar. Para este filósofo, todos as formas de conhecimento são simbólicas, desde a lógica até o conhecimento empírico, que passa a ser compreendido não porque é experienciado, mas porque é refletido, simbolizado. O filósofo, então, compreende que “a realidade é uma compreensão simbólica” (Fernandes, 2000), a racionalidade não se aplica somente ao fazer científico, como também ao fazer religioso, mítico. Segundo Cassirer (2011, 21),
não só o mito, a arte e a linguagem, mas até o conhecimento teórico chegam a ser mera fantasmagoria, pois nem este pode refletir a autêntica natureza das coisas, tais como são, devendo delimitar sua essência em conceitos.
Na criação do mito, tal racionalidade não está desprendida da subjetividade, muito menos da capacidade imaginativa. Nas palavras de Cassirer, (2004, 81), “mito e linguagem estão em constante contato recíproco”, seus conteúdos portam e condicionam um ao outro mutuamente. Explica ele que “toda designação linguística é essencialmente ambígua e, nesta ambiguidade, nesta “paronímia” das palavras está a fonte primeva de todos os mitos” (idem, 2011, 18). Daí se compreende que o mesmo maravilhamento que rege e dá origem à palavra concebe o mito. O filósofo em questão especula que a força mítico-mágica da linguagem “só vem à tona quando aparece na forma de som articulado” (CASSIRER, 2004, 81). A expressão é a concretização da força mítico-mágica da palavra, que enquanto não manifesta é apenas pensamento.
A palavra enquanto nomeadora do mundo, dos objetos, dos seres está para além da representação. Ela revela a essência em si da coisa nomeada. O mito é essa coincidência de representação e essência da coisa em si nomeada. O mito é, pela palavra, a exteriorização de uma essência interior, que o nome das divindades mítico-religiosas condensa e encerra em si a essência do seu caráter. Cassirer defende que, no mundo mítico, a apreensão do pensamento, da sua essência, acontece a partir do conceito do objeto e a partir do objeto.
Nessa relação, o mito e linguagem estão intrinsecamente ligados. A criação de um determina a criação do outro. E os contos de fadas? A relação é tão próxima ou mais distante? Tolkien, ao descrever a origem dos contos de fadas, realiza uma reflexão bem interessante no que concerne à produção cultural humana ao longo dos séculos: ele afirma que os contos que se contam hoje nada mais são do que um caldeirão de sopa, “designo a história tal como é servida por seu autor ou narrador” (TOLKIEN, 2013, 17)  e na composição dessa sopa há os “ossos”, que são “suas fontes ou seu material” (idem, ibidem) e o caldeirão de sopa é a mixórdia histórica em torno da qual o homem, com o passar do tempo, foi reunindo figuras, personagens, imagens, ideias para compor suas histórias. O homem, que narrador, compõe as mãos que cozem e elas são importantes, porque as suas escolhas para compor o caldeirão de sopa não são às cegas. Segundo Tolkien, ao narrar histórias,
a relação entre o “elemento do conto de fadas” e os deuses, reis e homens anônimos, ilustrando (creio) a opinião de que esse elemento nem se eleva nem cai, mas está lá, no Caldeirão da História, esperando pelas grandes figuras do Mito e da História, e por Ele ou Ela ainda sem nome, esperando pelo momento de serem lançados no ensopado em lenta fervura, um por um ou todos juntos, sem levar em conta categoria social nem precedência (TOLKIEN, 2013, 22).
Tolkien afirma que foi nos contos de fadas que ele primeiro pressentiu “a potência das palavras, e o prodígio das coisas, como pedra, madeira, ferro; árvore e grama; casa e fogo; pão e vinho” (idem, ibidem, 39). Talvez, para o homem atual, distante das mitologias clássicas, o conto de fadas seja realmente o primeiro contato com o maravilhamento, com a consciência do poderio da palavra – toda ela encantada por excelência. Assim como a palavra inicialmente esteve ligada à expressão das paixões, “os contos de fadas claramente não envolviam primordialmente a possibilidade, mas sim a desejabilidade. Se despertavam desejo, satisfazendo-o ao mesmo tempo que muitas vezes o atiçavam insuportavelmente, tinham sucesso” (TOLKIEN, 2013, 280).
Logo, para se despertar para os contos, temos que mergulhar na mixórdia da história, no caldeirão de sopa em que se tornaram as práticas sociais da linguagem e dos fatos, temos que saber ler os ossos que constituem esse “caldeirão de sopa” (TOLKIEN, 2013). E veja bem, a metáfora “ossos”, com a qual Tolkien se refere aos contos, é bastante significativa, uma vez que os ossos, “num caldeirão de sopa”, constituem a parte mais consistente. Então no caldeirão cultural, os contos de fada são a parte consistente a partir da qual se transmite conhecimento, sabedoria, narrativas exemplares e fantásticas. O maravilhamento constante só pode ocorrer pela palavra, que é auto-responsável pela ebolição de si e tudo o que é simbólico. As três coisas – invenção independente, herança e difusão – evidentemente tiveram seu papel na produção da intrincada teia da História (TOLKIEN, 2013, 18). A história dos contos de fadas provavelmente é mais complexa que a história física da raça humana, e tão complexa quanto a história da linguagem humana e dos mitos.

BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas cidades, Editora 34, 2017.
CASSIRER, Ernest.  “A filosofia das formas simbólicas: segunda parte”. In: O pensamento mítico. Tradução de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 
_____. Linguagem e mito. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011.
FERNANDES, Vladimir.Cassirer: a filosofia das formas simbólicas”. Capítulo 1 da dissertação de Mestrado em Filosofia – Ernst Cassirer: o mito político como técnica de poder no nazismo – defendida na PUC SP em 2000. file:///C:/Users/Rosa%20Amélia/Desktop/cassirer.pdf (consultado em 28/10/19).
JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1930.
NUNES, Benedito. Introdução à Filosofia da Arte. São Paulo: Editora Loyola, 2016.
ROSA, João Guimarães. “Guimarães Rosa por ele mesmo” In: Cadernos de Literatura Brasileira: João Guimarães Rosa. Instituto Moreira Salles, 2006.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fulvia M. L. Moretto. São Paulo: Unicamp Editora, 2015.
TOLKIEN, J. R. R. Árvore e Folha. Tradução de Ronald Eduard Kyrmse. São Paulo: Martins fontes, 2013.