quinta-feira, 29 de junho de 2017

O prenúncio da dupla jornada de trabalho feminino em Utopia

O prenúncio da dupla jornada de trabalho feminino em Utopia de Thomas Morus

A utopia, apresentada no dicionário de Filosofia, baseada nas ideias de Morus, é conceituada como a representação, “sob a forma de uma descrição pormenorizada e concreta” (Lalande: 1996, 1184), de uma organização ideal para uma sociedade humana. A idealização passa por conceber a sociedade de forma perfeita: sábia, poderosa e feliz, “graças as instituições ideais de que goza” (idem, ibidem). Dessa forma, as utopias, por seu caráter humanístico, são sociedades que estimam e vivem, em plenitude, a igualdade entre os seres humanos. Os ideais e a cultura, se passam por algum conflito, não conduzem os homens e mulheres para a guerra e todos os cidadãos zelam pela harmonia entre si.
A utopia é o não-lugar, por sua impossibilidade de se concretizar como lugar real. Observa-se, a partir da leitura de Morus, que a utopia, enquanto mito da cidade ideal, nasce dos anseios dos homens, sobretudo dos homens e não das mulheres, em relação a uma sociedade justa; toma corpo enquanto texto, no sentido de representar uma realidade almejada e torna-se um modelo, sobretudo a partir de uma descrição tão minuciosa, cuja apresentação à humanidade, destaca os seus anseios: uma sociedade justa e do bem para todos homens e mulheres.
As utopias são sempre complexas, polissêmicas, opulentas. Justamente devido a tal riqueza, é praticamente impossível uma leitura unilateral e objetiva. As utopias, sobretudo devido ao seu caráter plural, são filosóficas e literárias simultaneamente. Por sua essência idealista, elas revelam o completo inconformismo do homem diante da vida concreta, elas revelam o desejo pela justiça, pela equidade, a vontade do equilíbrio, por isso mesmo são apenas modelos. Tal desejo constante de equidade e a incompletude que move o homem são características na humanidade inferidas a partir de qualquer sociedade. Considerando que toda a humanidade seria contemplada com as virtudes das utopias, observa-se que, ao escrever a Utopia, Morus peca, porque não dá à mulher o tratamento equânime ao tratamento dado ao homem.
A utopia de Morus é o desejo masculino expresso em palavras. Talvez ela tenha nascido da necessidade constante do ser humano, contemplada na pessoa do Morus, da busca da satisfação, da busca da justiça. Nesse sentido, compreende-se que as conquistas dos homens não se constituem de forma plena. Do ponto de vista existencial, nem pode se assim se constituir. Mas, analisando a história do homem, observa-se que, em alguns momentos históricos, a humanidade avança em algumas conquistas que dizem respeito às particularidades humanas; outras que dizem respeito a sua sociedade: uma ligada a outra, de forma complementar.
Considerando a condição ontológica, a luta do homem tem sido constante no sentido de alcançar e viver plenamente alguns sentimentos e direitos, por exemplo, o direito ao exercício particular da sexualidade, o direito social ao trabalho, à diversidade da família e à distribuição de renda, ao sentimento do amor, da solidariedade, da compaixão, da fraternidade, do bem e da justiça. Nos altos e baixos das sociedades humanas, caminham homens e mulheres nessa luta diária para suprimir os conflitos existenciais particulares e coletivos e viver o bem e a justiça de forma plena. Contudo, vale ressaltar, os conflitos que se referem especificamente ao gênero masculino não são similares aos femininos e alguns podem ser atropelados por outros.
Apesar de o mundo, a terra, Gaia, o princípio ter sua origem no feminino, a humanidade tem sido conduzida por uma ética masculina desde sempre. Contrapondo a ética masculina à feminina dentro as utopias, diante do que este gênero filosófico-literário representa, ressaltam-se dois mundos distintos: um utópico, engendrado pelas buscas existenciais e pela inconformação do masculino; outro mais centrado na realidade da ilha da Utopia e na sua construção, que se refere ao feminino. A utopia é um gênero literário filosófico que privilegia os homens, assegura Fortunati (2006, tradução própria). A utopia, apesar de ser um nome feminino, é ideologicamente masculina, criada por Utopus, um rei idealista e, como o próprio gênero aponta, homem, macho.
O primeiro indício de que a Utopia, ideologicamente, está enraizada no masculino relaciona-se à origem da ilha: o idealizador da ilha é um rei – masculino – que cria uma cidade fixada numa ilha – feminino. Essa marcação ideológica passa pela linguagem que, durante toda a descrição, registra querências e não querências masculinas, conforme se observa no exemplo a seguir em que se descreve como se glorifica um homem do bem na Utopia:
“Erguem em praças públicas estátuas para homens eminentes que foram dignos do Estado, ao mesmo tempo para perpetuar a lembrança de suas obras e para que a glórias dos antepassados sirva de estímulo a seus descendentes para fazer o bem” (Morus: 1997, 127).
A voz que narra, que compõe, que edifica a cidade utópica nada mais é aquela que representa a ideologia patriarcal vigente. É bem verdade que, desde os primórdios, foi estabelecida uma diferença gigantesca entre os gêneros. Ela, a princípio, era de toda ordem.  Nas sociedades antigas, as mulheres eram consideradas seres incapazes de aprender, em outras eram comparadas a animais. Na filosofia antiga, a mulher era considerada apenas um repositório para o gozo masculino e para gerar filhos, um receptáculo para receber o homem. Na era medieval, a mulher foi associada à loucura, por ter suas características associadas à irracionalidade, libidinosidade e à luxúria.
As mulheres já foram propriedades, já foram subservientes, já foram escravas, já foram esposas submissas e até hoje, em alguns casos, continuam assim sendo. Para Carvalho (apud Farah, 2004), as diferenças entre homens e mulheres são enfatizadas, estabelecendo-se uma polaridade entre masculino e feminino, produção e reprodução e público e privado. Para o feminismo da diferença, o poder concentrar-se-ia na esfera pública, estando nessa polaridade a origem da subordinação das mulheres. Na Utopia, reconhece-se essa polaridade fincada na ordem pública. A submissão da mulher ao homem se revela, sobretudo, nos ambientes públicos sociais, nos cultos religiosos, nas realizações festivas, na divisão das tarefas comunitárias, conforme se verifica na citação seguinte em que se observa a mulher numa posição sempre atrás, ou seja, posição de inferioridade e subserviência.
...ao entrarem no templo, os homens se dirigem para a direita, as mulheres para a esquerda, de modo que se os membros masculinos da família estejam sentados diante do pai e que a mãe esteja atrás do grupo de mulheres.
Na Utopia, considerando todo o contexto em que está inserida a composição de Morus, observa-se que o autor dá ao feminino muito além daquilo que ele não tem, a condição de estudo, por exemplo, é algo que é dado à mulher. Tal fato aponta para o reconhecimento das qualidades intelectuais do feminino. Nesse sentido, Morus constrói uma narrativa apontando para a possibilidade de emancipação do feminino, vale destacar emancipação intelectual. Nesse sentido, também, vale lembrar que a narrativa de Morus, além de ressaltar a capacidade intelectual do feminino, destaca a condição do feminino de exercer funções militares e de trabalho.
Eles se submetem permanentemente e em dias determinados à disciplina militar, não somente os homens mas também às mulheres, a fim de estarem preparados para a guerra, se for indispensável (132).
Compreende-se, assim, que Morus eleva a mulher para outra categoria social, diferente da realidade vivida. Contudo, vale ressaltar que, ao elevar a mulher a essa nova categoria de estudante e trabalhadora, Morus não propõe a divisão das responsabilidades domésticas com o homem. “A cozinha, o preparo de alimentos e a ordem da refeição são incumbência exclusiva de mulheres, cada família enviando de cada vez as suas” (90). Tal fato aponta, já no século XV, para o exercício feminino de uma dupla jornada de trabalho, em que a mulher, além das obrigações domésticas que lhe cabem, praticamente por uma imposição arbitrária, pode, em alguns casos, e deve, em outros, assumir outras responsabilidades: a intelectual, o trabalho e a guerra. Assim, pode-se afirmar que Morus, em Utopia, aponta para uma possível independência feminina, mas vale lembrar que essa independência é dependente. Essa independência dependente, paradoxal, que se reconhece na obra, demonstra o prenúncio da jornada dupla de trabalho feminino.
À mulher é dada a possibilidade de estudar a arte do seu ofício ou do que for de seu interesse, à mulher é concedido o direito de acompanhar o marido nos cultos religiosos e se colocar à direita/esquerda do sifogrante, à mulher é dada à condição de trabalhar. Todas essas prerrogativas são masculinas dadas ao feminino, elevando a sua condição social; contudo nenhuma atribuição feminina é compartilhada de nenhuma maneira com os homens, tanto é que Morus afirma que, em outras palavras, que os trabalhos domésticos, são obrigação exclusiva de mulheres. Isso demonstra, na obra de Morus, a realidade da jornada dupla que começa a se construir socialmente como algo natural.
Além disso, Morus afirma que, em relação ao trabalho, todos têm as mesmas responsabilidades, “uma única atividade é comum a todos, homens e mulheres: a agricultura, que ninguém pode ignorar” (idem, 78). O estudo – aprendizagem – relacionado ao ofício/trabalho também é uma obrigação “Todos, homens e mulheres, sem exceção, são obrigados a aprender um ofício...” (idem, 79). Nota-se aí uma relativa igualdade entre os gêneros. Destaca-se tal relatividade, uma vez que, as responsabilidades femininas relacionadas ao trabalho doméstico, à criação dos filhos continuam sendo apresentadas como competências femininas subordinadas a lei masculina, conforme se verifica nas passagens “As mulheres submetem-se a seus maridos, os filhos a seus pais e, de maneira geral, os mais jovens aos mais velhos” (idem, 87-8) e “Os maridos punem as mulheres; os pais punem seus filhos, a menos que uma falta muito grave exija reparação pública” (idem, 126).
As utopias tradicionais, como se observa em Morus, são, nas palavras de Fortunaty, “a repetição de mitos e costumes das sociedades patriarcais” (2006, 2). Nas utopias tradicionais, devido a questões morais do seu tempo, não há uma outra alternativa melhor para a mulher, exceto aquela pensada a partir de valores éticos masculinos. Isso pode ser verificado na passagem em que Morus coloca as preocupações masculinas e aponta as queixas das mulheres como algo que importuna o espírito do homem, impedindo-o de viver uma vida livre e feliz:
Há riqueza maior do que viver sem nenhuma preocupação, com o espírito livre e feliz, sem inquietar-se com o pão, sem ser importunado pelas queixas de uma esposa, sem temer a pobreza para um filho, sem se atormentar com o dote de uma filha? Poder contar com os recursos e a felicidade dos familiares, mulher, filhos e netos, e até a mais longa posteridade que um nobre pudesse desejar? (Morus: 1997, 161).
Mesmo considerando o tempo em que foi escrito, mesmo considerando que avanços propostos em relação à participação da mulher na sociedade em relação ao trabalho, ao estudo, à participação permitida na guerra, à participação consentida e acompanhada por homens nos altares religiosos, há muito o que se questionar em relação à participação da mulher na construção da Utopia de Morus, sobretudo no que se refere à sua autonomia e à proposta,  já no século XV, de uma jornada dupla de trabalho para o feminino, quase como uma exigência, que não se estabelece para o masculino.
A mulher acumula as suas obrigações relacionadas aos trabalhos domésticos associadas às outras que Morus lhe dá como se fosse prêmio. Observa-se que, para o serviço militar, não há alternância de envio das mulheres e muito menos alternância de responsabilidades quanto aos serviços domésticos.
Eles se submetem permanentemente e em dias determinados à disciplina militar, não somente os homens, mas também às mulheres, a fim de estarem preparados para a guerra, se for indispensável (idem, 132).
Inclusive, afirma-se que a mulher pode, se for treinada, fazer quaisquer serviços que competiam aos homens em decorrência de sua força física, traço que o distingue do gênero feminino.   Em relação ao exercício da sexualidade, não se informa muita coisa, diz-se acerca da condição para o casamento, à mulher é prerrogativa que se case mais cedo que o homem.
Uma moça não se casa antes dos vinte e dois anos, um rapaz, antes dos vinte e seis. Uma moça e um rapaz reconhecidos culpados de amores clandestinos são severamente punidos e o casamento lhe é doravante interdito, a menos que o príncipe os perdoe.
Tanto à mulher quanto ao homem são dadas as mesmas condições para as escolhas dos respectivos companheiros: a possibilidade de ver nu o pretendente, para evitar escolhas das quais possam surgir arrependimentos, “A mulher, seja virgem ou viúva, é mostrada nua ao seu pretendente por uma mulher honesta; um homem igualmente digno de confiança mostra à pretendente nu” (123). Contudo, observa-se, no discurso, uma considerável diferença relacionada à exigência da conduta sexual entre os gêneros. Da mulher exige-se que seja virgem ou viúva, do homem exige-se apenas que seja digno de confiança. Essa diferença, que se estabelece também pelo discurso, pode estar relacionada à forma de se conceber o exercício da sexualidade: a exigência da castidade feminina e da confiabilidade masculina.
O feminino na obra de Morus e o discurso hegemônico em relação às instituições sociais – casamento, família, religião, trabalho, governo – reforçam os papeis que a mulher tem exercido na sociedade, sobretudo em relação ao trabalho e em relação à família. Talvez daí nasça a naturalização, antiga e atual, com a qual os discursos sociais se constituem em relação as funções femininas nas sociedades e que não costumam ser questionadas. Reconhece-se que há uma naturalização das competências femininas, no que diz respeito às suas funções. Reconhece-se, no texto de Morus, que, para o trabalho, a mulher tem papel equiparado ao do homem, a ele é igual; e na família e no exercício da religião, da sexualidade, e de outras instituições sociais a mulher a ele é subordinada, a mulher precisa ser vigiada em seus comportamentos, ela não tem a confiança e o respeito do homem, seu companheiro, que assim lhe parece ser, entre aspas, quando na igreja a mulher deve se manter sempre visível ao homem, pois, “com isso quer se que os chefes de famílias possam vigiar em público a conduta dos que eles governam e instruem em suas casas” (Idem, 158).
É evidente, no discurso de Morus, em Utopia, que a igualdade não é paritária entre homens e mulheres, uma vez que a única atividade comum entre os gêneros é o trabalho e o estudo que forma para o trabalho. Nesse sentido, a ideia de igualdade se esfacela, a ideia de justiça que se idealiza na narrativa de Morus oportuniza a reflexão acerca do papeis exercidos pelo feminino, revela o lado duvidoso da relação entre o masculino e o feminino, demonstra, por um lado, a possibilidade de emancipação, pelo trabalho e pelo estudo, mas reforça a condição de submissão e subserviência ao masculino sob a qual, ainda hoje, a mulher está (ex)posta. Existe uma ética masculina que rege os comportamentos, inclusive e sobretudo os femininos, de forma a demonstrar a condição de supremacia do macho, alfa, forte, dominador.
Partindo dos conceitos de ética, disciplina sobre a qual se assenta esta reflexão, é bom lembrar que, em termos conceituais, a ética reina sobre a moralidade, a moral é imperativa ao indivíduo, a ética é um imperativo coletivo, assegura comportamentos morais de todos aqueles regidos por ela. A ética é o reino da moralidade, ou seja, a moralidade subsume à ética. Dessa maneira, por analogia, é possível estabelecer, em Utopia, relações intrínsecas entre a ética e o masculino, e entre a moral e o feminino. A ética está para o masculino, assim como a moral está para o feminino. A ética rege e determina os comportamentos morais vividos pela sociedade; a ética é masculina, a moral é exercício do masculino e do feminino, com destaque para este. Nesse sentido, considerando que a ética e a moral são culturais, compreende-se, do ponto de vista sincrônico da utopia, a ética como o imperativo, na Utopia, masculino; e a moral, como o exercício da subserviência, exercida sobretudo pelo feminino.
A partir do conceito de ideologia[1], a cultura exposta no país utópico revela-se, excessivamente, harmônica no que se refere aos papéis sociais atribuídos aos homens e pelos homens. A descrição de Utopia expõe um país patriarcal, em que tudo está normatizado, regulado pelas leis e construído pelo bom combate, sem guerra, com acordos que atendam às demandas de toda a sociedade, numa perspectiva sempre masculina, de acordo com Fortunati (2006, 6), “caracterizada por ideias de controle, absoluta perfeição, linearidade e lógica da linguagem”.



Bibliografia
FARAH, Marta Ferreira Santos. “Gênero e políticas públicas”. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, 12(1): 360, janeiro-abril/2004.
FORTUNATI Vita. RAMOS, Iolanda. “Utopia Re-Interpreted: An Interview with Vita Fortunati”, Spaces of Utopia: An Electronic Journal, nr. 2, Summer 2006, pp. 1-14 ISSN 1646-4729.
LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
MORUS, Tomás. A utopia. Porto Alegre: L&M Editores, 1997.
PLATÃO. A República. In: Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2004.
SILVA, Vânia dos Santos. Algumas Leituras Feministas de Platão: entre a imagem e a identidade. Brasília, 2013. 99p.
SANTOS, Boaventura Sousa. CHAUÍ, Marilena. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2013.





[1] Sistema de ideias sustentadas por um grupo social, as quais refletem, racionalizam e defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos ou econômicos; conjunto de convicções filosóficas, sociais, políticas etc. de um indivíduo ou grupo de indivíduos.

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