O
prenúncio da dupla jornada de trabalho feminino em Utopia de Thomas Morus
A
utopia, apresentada no dicionário de Filosofia, baseada nas ideias de Morus, é
conceituada como a representação, “sob a forma de uma descrição pormenorizada e
concreta” (Lalande: 1996, 1184), de uma organização ideal para uma sociedade
humana. A idealização passa por conceber a sociedade de forma perfeita: sábia,
poderosa e feliz, “graças as instituições ideais de que goza” (idem, ibidem).
Dessa forma, as utopias, por seu caráter humanístico, são sociedades que
estimam e vivem, em plenitude, a igualdade entre os seres humanos. Os ideais e
a cultura, se passam por algum conflito, não conduzem os homens e mulheres para
a guerra e todos os cidadãos zelam pela harmonia entre si.
A
utopia é o não-lugar, por sua impossibilidade de se concretizar como lugar real.
Observa-se, a partir da leitura de Morus, que a utopia, enquanto mito da cidade
ideal, nasce dos anseios dos homens, sobretudo dos homens e não das mulheres,
em relação a uma sociedade justa; toma corpo enquanto texto, no sentido de
representar uma realidade almejada e torna-se um modelo, sobretudo a partir de
uma descrição tão minuciosa, cuja apresentação à humanidade, destaca os seus
anseios: uma sociedade justa e do bem para todos homens e mulheres.
As
utopias são sempre complexas, polissêmicas, opulentas. Justamente devido a tal
riqueza, é praticamente impossível uma leitura unilateral e objetiva. As
utopias, sobretudo devido ao seu caráter plural, são filosóficas e literárias
simultaneamente. Por sua essência idealista, elas revelam o completo
inconformismo do homem diante da vida concreta, elas revelam o desejo pela
justiça, pela equidade, a vontade do equilíbrio, por isso mesmo são apenas
modelos. Tal desejo constante de equidade e a incompletude que move o homem são
características na humanidade inferidas a partir de qualquer sociedade.
Considerando que toda a humanidade seria contemplada com as virtudes das
utopias, observa-se que, ao escrever a Utopia, Morus peca, porque não dá à
mulher o tratamento equânime ao tratamento dado ao homem.
A
utopia de Morus é o desejo masculino expresso em palavras. Talvez ela tenha nascido
da necessidade constante do ser humano, contemplada na pessoa do Morus, da
busca da satisfação, da busca da justiça. Nesse sentido, compreende-se que as
conquistas dos homens não se constituem de forma plena. Do ponto de vista
existencial, nem pode se assim se constituir. Mas, analisando a história do
homem, observa-se que, em alguns momentos históricos, a humanidade avança em
algumas conquistas que dizem respeito às particularidades humanas; outras que
dizem respeito a sua sociedade: uma ligada a outra, de forma complementar.
Considerando
a condição ontológica, a luta do homem tem sido constante no sentido de
alcançar e viver plenamente alguns sentimentos e direitos, por exemplo, o direito
ao exercício particular da sexualidade, o direito social ao trabalho, à diversidade
da família e à distribuição de renda, ao sentimento do amor, da solidariedade,
da compaixão, da fraternidade, do bem e da justiça. Nos altos e baixos das
sociedades humanas, caminham homens e mulheres nessa luta diária para suprimir
os conflitos existenciais particulares e coletivos e viver o bem e a justiça de
forma plena. Contudo, vale ressaltar, os conflitos que se referem
especificamente ao gênero masculino não são similares aos femininos e alguns
podem ser atropelados por outros.
Apesar
de o mundo, a terra, Gaia, o princípio ter sua origem no feminino, a humanidade
tem sido conduzida por uma ética masculina desde sempre. Contrapondo a ética
masculina à feminina dentro as utopias, diante do que este gênero
filosófico-literário representa, ressaltam-se dois mundos distintos: um
utópico, engendrado pelas buscas existenciais e pela inconformação do
masculino; outro mais centrado na realidade da ilha da Utopia e na sua
construção, que se refere ao feminino. A utopia é um gênero literário
filosófico que privilegia os homens, assegura Fortunati (2006, tradução própria).
A utopia, apesar de ser um nome feminino, é ideologicamente masculina, criada
por Utopus, um rei idealista e, como o próprio gênero aponta, homem, macho.
O
primeiro indício de que a Utopia, ideologicamente, está enraizada no masculino relaciona-se
à origem da ilha: o idealizador da ilha é um rei – masculino – que cria uma
cidade fixada numa ilha – feminino. Essa marcação ideológica passa pela
linguagem que, durante toda a descrição, registra querências e não querências
masculinas, conforme se observa no exemplo a seguir em que se descreve como se
glorifica um homem do bem na Utopia:
“Erguem em praças públicas estátuas
para homens eminentes que foram dignos do Estado, ao mesmo tempo para perpetuar
a lembrança de suas obras e para que a glórias dos antepassados sirva de estímulo
a seus descendentes para fazer o bem” (Morus: 1997, 127).
A
voz que narra, que compõe, que edifica a cidade utópica nada mais é aquela que
representa a ideologia patriarcal vigente. É bem verdade que, desde os
primórdios, foi estabelecida uma diferença gigantesca entre os gêneros. Ela, a
princípio, era de toda ordem. Nas
sociedades antigas, as mulheres eram consideradas seres incapazes de aprender,
em outras eram comparadas a animais. Na filosofia antiga, a mulher era
considerada apenas um repositório para o gozo masculino e para gerar filhos, um
receptáculo para receber o homem. Na era medieval, a mulher foi associada à
loucura, por ter suas características associadas à irracionalidade,
libidinosidade e à luxúria.
As
mulheres já foram propriedades, já foram subservientes, já foram escravas, já
foram esposas submissas e até hoje, em alguns casos, continuam assim sendo.
Para Carvalho (apud Farah, 2004), as diferenças entre homens e mulheres são
enfatizadas, estabelecendo-se uma polaridade entre masculino e feminino,
produção e reprodução e público e privado. Para o feminismo da diferença, o
poder concentrar-se-ia na esfera pública, estando nessa polaridade a origem da
subordinação das mulheres. Na Utopia, reconhece-se essa polaridade fincada na
ordem pública. A submissão da mulher ao homem se revela, sobretudo, nos ambientes
públicos sociais, nos cultos religiosos, nas realizações festivas, na divisão
das tarefas comunitárias, conforme se verifica na citação seguinte em que se
observa a mulher numa posição sempre atrás, ou seja, posição de inferioridade e
subserviência.
...ao
entrarem no templo, os homens se dirigem para a direita, as mulheres para a
esquerda, de modo que se os membros masculinos da família estejam sentados
diante do pai e que a mãe esteja atrás do grupo de mulheres.
Na
Utopia, considerando todo o contexto em que está inserida a composição de
Morus, observa-se que o autor dá ao feminino muito além daquilo que ele não
tem, a condição de estudo, por exemplo, é algo que é dado à mulher. Tal fato
aponta para o reconhecimento das qualidades intelectuais do feminino. Nesse
sentido, Morus constrói uma narrativa apontando para a possibilidade de
emancipação do feminino, vale destacar emancipação intelectual. Nesse sentido,
também, vale lembrar que a narrativa de Morus, além de ressaltar a capacidade
intelectual do feminino, destaca a condição do feminino de exercer funções
militares e de trabalho.
Eles
se submetem permanentemente e em dias determinados à disciplina militar, não
somente os homens mas também às mulheres, a fim de estarem preparados para a
guerra, se for indispensável (132).
Compreende-se,
assim, que Morus eleva a mulher para outra categoria social, diferente da
realidade vivida. Contudo, vale ressaltar que, ao elevar a mulher a essa nova
categoria de estudante e trabalhadora, Morus não propõe a divisão das
responsabilidades domésticas com o homem. “A cozinha, o preparo de alimentos e
a ordem da refeição são incumbência exclusiva de mulheres, cada família
enviando de cada vez as suas” (90). Tal fato aponta, já no século XV, para o
exercício feminino de uma dupla jornada de trabalho, em que a mulher, além das
obrigações domésticas que lhe cabem, praticamente por uma imposição arbitrária,
pode, em alguns casos, e deve, em outros, assumir outras responsabilidades: a
intelectual, o trabalho e a guerra. Assim, pode-se afirmar que Morus, em
Utopia, aponta para uma possível independência feminina, mas vale lembrar que essa
independência é dependente. Essa independência dependente, paradoxal, que se
reconhece na obra, demonstra o prenúncio da jornada dupla de trabalho feminino.
À
mulher é dada a possibilidade de estudar a arte do seu ofício ou do que for de
seu interesse, à mulher é concedido o direito de acompanhar o marido nos cultos
religiosos e se colocar à direita/esquerda do sifogrante, à mulher é dada à
condição de trabalhar. Todas essas prerrogativas são masculinas dadas ao
feminino, elevando a sua condição social; contudo nenhuma atribuição feminina é
compartilhada de nenhuma maneira com os homens, tanto é que Morus afirma que,
em outras palavras, que os trabalhos domésticos, são obrigação exclusiva de
mulheres. Isso demonstra, na obra de Morus, a realidade da jornada dupla que
começa a se construir socialmente como algo natural.
Além
disso, Morus afirma que, em relação ao trabalho, todos têm as mesmas
responsabilidades, “uma única atividade é comum a todos, homens e mulheres: a
agricultura, que ninguém pode ignorar” (idem, 78). O estudo – aprendizagem –
relacionado ao ofício/trabalho também é uma obrigação “Todos, homens e
mulheres, sem exceção, são obrigados a aprender um ofício...” (idem, 79). Nota-se
aí uma relativa igualdade entre os gêneros. Destaca-se tal relatividade, uma
vez que, as responsabilidades femininas relacionadas ao trabalho doméstico, à criação
dos filhos continuam sendo apresentadas como competências femininas
subordinadas a lei masculina, conforme se verifica nas passagens “As mulheres
submetem-se a seus maridos, os filhos a seus pais e, de maneira geral, os mais
jovens aos mais velhos” (idem, 87-8) e “Os maridos punem as mulheres; os pais
punem seus filhos, a menos que uma falta muito grave exija reparação pública” (idem,
126).
As
utopias tradicionais, como se observa em Morus, são, nas palavras de Fortunaty,
“a repetição de mitos e costumes das sociedades patriarcais” (2006, 2). Nas
utopias tradicionais, devido a questões morais do seu tempo, não há uma outra
alternativa melhor para a mulher, exceto aquela pensada a partir de valores
éticos masculinos. Isso pode ser verificado na passagem em que Morus coloca as
preocupações masculinas e aponta as queixas das mulheres como algo que
importuna o espírito do homem, impedindo-o de viver uma vida livre e feliz:
Há riqueza maior do que
viver sem nenhuma preocupação, com o espírito livre e feliz, sem inquietar-se
com o pão, sem ser importunado pelas queixas de uma esposa, sem temer a pobreza
para um filho, sem se atormentar com o dote de uma filha? Poder contar com os
recursos e a felicidade dos familiares, mulher, filhos e netos, e até a mais
longa posteridade que um nobre pudesse desejar? (Morus: 1997, 161).
Mesmo
considerando o tempo em que foi escrito, mesmo considerando que avanços
propostos em relação à participação da mulher na sociedade em relação ao
trabalho, ao estudo, à participação permitida na guerra, à participação
consentida e acompanhada por homens nos altares religiosos, há muito o que se
questionar em relação à participação da mulher na construção da Utopia de Morus,
sobretudo no que se refere à sua autonomia e à proposta, já no século XV, de uma jornada dupla de
trabalho para o feminino, quase como uma exigência, que não se estabelece para
o masculino.
A
mulher acumula as suas obrigações relacionadas aos trabalhos domésticos
associadas às outras que Morus lhe dá como se fosse prêmio. Observa-se que,
para o serviço militar, não há alternância de envio das mulheres e muito menos
alternância de responsabilidades quanto aos serviços domésticos.
Eles se submetem
permanentemente e em dias determinados à disciplina militar, não somente os
homens, mas também às mulheres, a fim de estarem preparados para a guerra, se
for indispensável (idem, 132).
Inclusive,
afirma-se que a mulher pode, se for treinada, fazer quaisquer serviços que
competiam aos homens em decorrência de sua força física, traço que o distingue
do gênero feminino. Em relação ao
exercício da sexualidade, não se informa muita coisa, diz-se acerca da condição
para o casamento, à mulher é prerrogativa que se case mais cedo que o homem.
Uma
moça não se casa antes dos vinte e dois anos, um rapaz, antes dos vinte e seis.
Uma moça e um rapaz reconhecidos culpados de amores clandestinos são
severamente punidos e o casamento lhe é doravante interdito, a menos que o
príncipe os perdoe.
Tanto
à mulher quanto ao homem são dadas as mesmas condições para as escolhas dos
respectivos companheiros: a possibilidade de ver nu o pretendente, para evitar
escolhas das quais possam surgir arrependimentos, “A mulher, seja virgem ou
viúva, é mostrada nua ao seu pretendente por uma mulher honesta; um homem
igualmente digno de confiança mostra à pretendente nu” (123). Contudo,
observa-se, no discurso, uma considerável diferença relacionada à exigência da
conduta sexual entre os gêneros. Da mulher exige-se que seja virgem ou viúva,
do homem exige-se apenas que seja digno de confiança. Essa diferença, que se
estabelece também pelo discurso, pode estar relacionada à forma de se conceber
o exercício da sexualidade: a exigência da castidade feminina e da confiabilidade
masculina.
O
feminino na obra de Morus e o discurso hegemônico em relação às instituições
sociais – casamento, família, religião, trabalho, governo – reforçam os papeis
que a mulher tem exercido na sociedade, sobretudo em relação ao trabalho e em
relação à família. Talvez daí nasça a naturalização, antiga e atual, com a qual
os discursos sociais se constituem em relação as funções femininas nas
sociedades e que não costumam ser questionadas. Reconhece-se que há uma
naturalização das competências femininas, no que diz respeito às suas funções.
Reconhece-se, no texto de Morus, que, para o trabalho, a mulher tem papel
equiparado ao do homem, a ele é igual; e na família e no exercício da religião,
da sexualidade, e de outras instituições sociais a mulher a ele é subordinada, a
mulher precisa ser vigiada em seus comportamentos, ela não tem a confiança e o
respeito do homem, seu companheiro, que assim lhe parece ser, entre aspas, quando
na igreja a mulher deve se manter sempre visível ao homem, pois, “com isso quer
se que os chefes de famílias possam vigiar em público a conduta dos que eles
governam e instruem em suas casas” (Idem, 158).
É
evidente, no discurso de Morus, em Utopia, que a igualdade não é paritária
entre homens e mulheres, uma vez que a única atividade comum entre os gêneros é
o trabalho e o estudo que forma para o trabalho. Nesse sentido, a ideia de
igualdade se esfacela, a ideia de justiça que se idealiza na narrativa de Morus
oportuniza a reflexão acerca do papeis exercidos pelo feminino, revela o lado duvidoso
da relação entre o masculino e o feminino, demonstra, por um lado, a
possibilidade de emancipação, pelo trabalho e pelo estudo, mas reforça a
condição de submissão e subserviência ao masculino sob a qual, ainda hoje, a
mulher está (ex)posta. Existe uma ética masculina que rege os comportamentos,
inclusive e sobretudo os femininos, de forma a demonstrar a condição de
supremacia do macho, alfa, forte, dominador.
Partindo
dos conceitos de ética, disciplina sobre a qual se assenta esta reflexão, é bom
lembrar que, em termos conceituais, a ética reina sobre a moralidade, a moral é
imperativa ao indivíduo, a ética é um imperativo coletivo, assegura
comportamentos morais de todos aqueles regidos por ela. A ética é o reino da
moralidade, ou seja, a moralidade subsume à ética. Dessa maneira, por analogia,
é possível estabelecer, em Utopia, relações intrínsecas entre a ética e o
masculino, e entre a moral e o feminino. A ética está para o masculino, assim
como a moral está para o feminino. A ética rege e determina os comportamentos
morais vividos pela sociedade; a ética é masculina, a moral é exercício do
masculino e do feminino, com destaque para este. Nesse sentido, considerando
que a ética e a moral são culturais, compreende-se, do ponto de vista
sincrônico da utopia, a ética como o imperativo, na Utopia, masculino; e a
moral, como o exercício da subserviência, exercida sobretudo pelo feminino.
A
partir do conceito de ideologia[1], a cultura exposta no país
utópico revela-se, excessivamente, harmônica no que se refere aos papéis
sociais atribuídos aos homens e pelos homens. A descrição de Utopia expõe um
país patriarcal, em que tudo está normatizado, regulado pelas leis e construído
pelo bom combate, sem guerra, com acordos que atendam às demandas de toda a
sociedade, numa perspectiva sempre masculina, de acordo com Fortunati (2006,
6), “caracterizada por ideias de controle, absoluta perfeição, linearidade e
lógica da linguagem”.
Bibliografia
FARAH, Marta Ferreira Santos. “Gênero e políticas
públicas”. Revista de Estudos Feministas.
Florianópolis, 12(1): 360, janeiro-abril/2004.
FORTUNATI Vita. RAMOS, Iolanda. “Utopia
Re-Interpreted: An Interview with Vita Fortunati”, Spaces of Utopia: An Electronic Journal, nr. 2, Summer 2006, pp. 1-14
ISSN 1646-4729.
LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
MORUS, Tomás. A utopia. Porto Alegre: L&M Editores, 1997.
PLATÃO.
A República. In: Os Pensadores. São
Paulo: Editora Nova Cultural, 2004.
SILVA, Vânia dos Santos. Algumas Leituras Feministas de Platão:
entre a imagem e a identidade. Brasília, 2013. 99p.
SANTOS,
Boaventura Sousa. CHAUÍ, Marilena. Direitos
humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2013.
[1] Sistema
de ideias sustentadas por um grupo social, as quais refletem, racionalizam e
defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes
morais, religiosos, políticos ou econômicos; conjunto de convicções
filosóficas, sociais, políticas etc. de um indivíduo ou grupo de indivíduos.
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