João Guimarães Rosa in: Grande Sertão Veredas.
Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei – na hora. Melhor alembro ( 407 ).
O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente – “Diadorim, meu amor...” Como era que eu podia dizer aquilo? (408) E como é que o amor desponta (215). Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe (259). E eu – como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim (266) E de repente eu estava gostando dele, num descomum, gostando ainda mais do que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo todo eu tinha gostado. Amor que amei – daí então acreditei. A pois, o que sempre não é assim? (332).
O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente – “Diadorim, meu amor...” Como era que eu podia dizer aquilo? (408) E como é que o amor desponta (215). Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe (259). E eu – como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim (266) E de repente eu estava gostando dele, num descomum, gostando ainda mais do que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo todo eu tinha gostado. Amor que amei – daí então acreditei. A pois, o que sempre não é assim? (332).
Explico ao
senhor: como se
drede fosse para
eu não ter vergonha
maior, o pensamento
dele que em
mim escorreu figurava diferente,
um Diadorim assim
meio singular, por fantasma, apartado completo do viver
comum, desmisturado de todos, de todas as outras pessoas – como quando a chuva
entre-onde-os-campos. Um Diadorim
só para mim.
Tudo tem seus mistérios. Eu
não sabia. Mas,
com minha mente,
eu abraçava com meu corpo aquele
Diadorim-que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não pode explicar
essas coisas (409). Deus é que me sabe (439).
O Reinaldo era Diadorim – mas Diadorim era um
sentimento meu (438). Aquilo me transformava,
me fazia crescer dum
modo, que doía
e prazia. Aquela
hora, eu pudesse morrer, não me
importava (409). Diz-que-direi ao senhor
o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a
ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito,
a gente quer que isso
seja, e vai,
na ideia, querendo
e ajudando; mas, quando é
destino dado, maior
que o miúdo,
a gente ama inteiriço
fatal, carecendo de
querer, e é
um só facear
com as surpresas. Amor desse,
cresce primeiro; brota é depois (189). Tudo turbulindo. Esperei o que vinha
dele. De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às
loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por
ponto de não ser possível dele gostar como queria, no honrado e no final.
Ouvido meu retorcia a voz dele. Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor
inchou, de empapar todas as folhagens,
e eu ambicionando
de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus
braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre (47). Abracei Diadorim, como as
asas de todos os pássaros (50). Diadorin é minha neblina... (50 ) amor é a
gente querendo achar o que é da gente (510).
O que
brotava em mim e rebrotava: essas demasias do coração(528). Meu corpo
gostava de Diadorim. Estendi
a mão, para
suas formas; mas,
quando ia, bobamente, ele
me olhou –
os olhos dele
não me deixaram. Diadorim, sério, testalto. Tive um
gelo. Só os olhos negavam. Vi – ele mesmo
não percebeu nada.
Mas, nem eu;
eu tinha percebido? Eu estava me
sabendo? Meu corpo gostava do corpo dele, na sala do teatro. Maiormente. As
tristezas ao redor de nós, como quando carrega para toda chuva. Eu podia pôr os
braços na testa, ficar assim, lorpa, sem encaminhamento nenhum. Que é que
queria? Não quis o que estava no ar; para isso, mandei vir uma idéia de mais
longe. Falei sonhando: – “Diadorim, você nãotem, não
terá alguma irmã,
Diadorim?” – voz
minha; eu perguntei.
Sei
lá se ele riu? O que disse, que resposta? Sei quando a amargura finca,
o que é o cão
e a criatura.
De tristeza, tristes águas, coração posto na beira. Irmã
nem irmão, ele não tinha: – “Só
tenho Deus, Joca
Ramiro... e você,
Riobaldo...” – ele declarou.
Hê, de medo,
coração bate solto
no peito; mas de
alegria ele bate inteiro e duro, que até dói, rompe para diante na parede
(250/1).
Ah, mas
falo falso. O
senhor sente? Desmente?
Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já
passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê,
de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido?
Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos
tempos, tudo miúdo recruzado (253/4).
Medo
de errar. Sempre tive. Medo de errar é que é a minha paciência. Mal. O senhor
fia? Pudesse tirar de si esse
medode-errar, a gente estava salva. O senhor tece? Entenda meu figurado.
Conforme lhe conto: Gostar ou não gostar, isso é coisa diferente. O sinal é
outro. Um ainda não é
um: quando ainda
faz parte com
todos. Eu nem sabia. (254/5)
Sufoquei, numa
estrangulação de dó.
Constante o que a
Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela
mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca de tão grosso
sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia,
mais impossivelmente. Mesmo
como jazendo assim, nesse
pó de palidez,
feito a coisa
e máscara, sem
gota nenhuma. Os olhos
dele ficados para
a gente ver.
A cara economizada, a
boca secada. Os
cabelos com marca
de duráveis... Não escrevo,
não falo! – para assim não ser: não foi,
não é, não fica sendo! Diadorim...
Eu
dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da
Bahia. Mandou todo o mundo
sair. Eu fiquei.
E a Mulher abanou brandamente a
cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou
de propósito o corpo.
E
disse...
Diadorim – nu de
tudo.
E ela
disse: – “A
Deus dada. Pobrezinha...”
E
disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu – não
contei ao senhor
– e mercê
peço: – mas
para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo
de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que
Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode
mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha...
Ela
era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão
para me benzer – mas com ela tapei foi um
soluçar, e enxuguei
as lágrimas maiores.
Uivei. Diadorim! Diadorim era uma
mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como
eu solucei meu desespero.
O
senhor não repare. Demore, que eu conto.
A vida da gente nunca tem termo real.
Eu
estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para
trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu
a toalha, recobrindo
as partes. Mas
aqueles olhos eu beijei,
e as faces,
a boca. Adivinhava
os cabelos. Cabelos que cortou
com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da
cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
– “Meu amor!...”
Foi
assim. Eu tinha me debruçado na janela,
para poder não presenciar o mundo. A Mulher lavou o rpo, que revestiu com a
melhor peça de roupa que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as
mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário que tinha sido meu, e
um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas de lágrimas-de-nossa-senhora. Só
faltou – ah!
– a pedra-de-ametista, tanto
trazida... O Quipes
veio, com as
velas, que acendemos em quadral.
Essas coisas se passavam perto de mim. Como
tinham ido abrir
a cova, cristamente.
Pelo repugnar e revoltar, primeiro eu quis: –
“Enterrem separado dos
outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache,
nunca se saiba...” Tal que disse, doidava. Recaí no
marcar do sofrer. Em real me vi,
que com a
Mulher junto abraçado,
nós dois chorávamos extenso. E
todos meus jagunços
decididos choravam. Daí, fomos,
e em sepultura
deixamos, no cemitério
do Paredão enterrada, em campo do
sertão.
Ela
tinha amor em mim.
E
aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que
narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.
Aqui
a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba. (860/3).
João Guimarães Rosa in: Grande Sertão Veredas.
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