sexta-feira, 21 de julho de 2017

Declaração de amor à Diadorin

           João Guimarães Rosa in: Grande Sertão Veredas. 
       
Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que    gostava  de Diadorim –  de amor   mesmo   amor,   mal  encoberto  em       amizade. Me  a  mim, foi de repente, que     aquilo se  esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei – na hora. Melhor  alembro ( 407  ).
O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim.  Me  abracei  com  ele.  Mel  se  sente  é  todo  lambente  – “Diadorim, meu amor...” Como era que eu podia dizer aquilo? (408) E  como  é  que  o  amor desponta (215). Coração  cresce  de  todo  lado.  Coração  vige  feito  riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração  mistura  amores.  Tudo  cabe (259). E  eu  –  como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim (266) E  de  repente  eu estava gostando dele, num descomum, gostando ainda mais do que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo todo eu tinha gostado. Amor que amei  – daí então acreditei. A pois, o que sempre não é assim? (332).
Explico  ao  senhor:  como  se  drede  fosse  para  eu  não  ter vergonha  maior,  o  pensamento  dele  que  em  mim  escorreu figurava  diferente,  um  Diadorim  assim  meio  singular,  por fantasma, apartado completo do viver comum, desmisturado de todos, de todas as outras pessoas – como quando a chuva entre-onde-os-campos.  Um  Diadorim  só  para  mim.  Tudo  tem  seus mistérios.  Eu  não  sabia.  Mas,  com  minha  mente,  eu  abraçava com meu corpo aquele Diadorim-que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não pode explicar essas coisas (409). Deus  é  que  me  sabe (439). 
O  Reinaldo era Diadorim – mas Diadorim era um sentimento meu (438). Aquilo  me  transformava,  me fazia  crescer  dum  modo,  que  doía  e  prazia.  Aquela  hora,  eu pudesse morrer, não me importava (409). Diz-que-direi  ao  senhor  o  que  nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer  que  isso  seja,  e  vai,  na  ideia,  querendo  e  ajudando; mas, quando  é  destino  dado,  maior  que  o  miúdo,  a  gente  ama inteiriço  fatal,  carecendo  de  querer,  e  é  um  só  facear  com  as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois (189). Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele. Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas  as  folhagens,  e  eu  ambicionando  de  pegar  em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre (47). Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros (50). Diadorin é minha neblina... (50 ) amor é a gente querendo achar o que é da gente (510).
  O  que brotava em mim e rebrotava: essas demasias do coração(528). Meu  corpo  gostava  de Diadorim.  Estendi  a  mão,  para  suas  formas;  mas,  quando  ia, bobamente,  ele  me  olhou  –  os  olhos  dele  não  me  deixaram. Diadorim, sério, testalto. Tive um gelo. Só os olhos negavam. Vi –  ele  mesmo  não  percebeu  nada.  Mas,  nem  eu;  eu  tinha percebido? Eu estava me sabendo? Meu corpo gostava do corpo dele, na sala do teatro. Maiormente. As tristezas ao redor de nós, como quando carrega para toda chuva. Eu podia pôr os braços na testa, ficar assim, lorpa, sem encaminhamento nenhum. Que é que queria? Não quis o que estava no ar; para isso, mandei vir uma idéia de mais longe. Falei sonhando: – “Diadorim, você nãotem,  não  terá  alguma  irmã,  Diadorim?”  –  voz  minha;  eu perguntei.
Sei lá se ele riu? O que disse, que resposta? Sei quando a amargura  finca,  o  que  é  o  cão  e  a  criatura.  De  tristeza,  tristes águas, coração posto na beira. Irmã nem irmão, ele não tinha: – “Só  tenho  Deus,  Joca  Ramiro...  e  você,  Riobaldo...”  –  ele declarou.  Hê,  de  medo,  coração  bate  solto  no  peito;  mas  de alegria ele bate inteiro e duro, que até dói, rompe para diante na parede (250/1).
Ah,  mas  falo  falso.  O  senhor  sente?  Desmente?  Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado (253/4).
Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que é a minha paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar de  si  esse  medode-errar, a gente estava salva. O senhor tece? Entenda meu figurado. Conforme lhe conto: Gostar ou não gostar, isso é coisa diferente. O sinal é outro. Um ainda  não  é  um:  quando  ainda  faz  parte  com  todos.  Eu  nem sabia. (254/5)
 Mas, pensar na pessoa que se ama, é como querer ficar à beira  d’água, esperando que o riacho, alguma hora, pousoso esbarre de correr (510/11)    Diadorim, de  meu amor – põe o pezinho em cera branca, que eu rastreio a flor de tuas passadas (610).       
 Aquela Mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes que esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já frias    rolavam.  Diadorim,  Diadorim,  oh,  ah,  meus-buritizais levados de verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as escadas com ele, em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim – será que  amereci    por  metade?  Com  meus  molhados  olhos  não olhei bem – como que garças voavam... E que fossem campear velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha, em volta do escuro do arraial...
Sufoquei,  numa  estrangulação  de  dó.  Constante  o  que  a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só  permanecia,  mais  impossivelmente.  Mesmo  como  jazendo assim,  nesse  pó  de  palidez,  feito  a  coisa  e  máscara,  sem  gota nenhuma.  Os  olhos  dele  ficados  para  a  gente  ver.  A  cara economizada,  a  boca  secada.  Os  cabelos  com  marca  de        duráveis... Não escrevo, não falo!  – para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...
Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas  da  Bahia.  Mandou  todo  o  mundo  sair.  Eu  fiquei.  E  a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo.
E disse...
Diadorim  –  nu  de  tudo. 
E  ela  disse:  –  “A  Deus  dada. Pobrezinha...”
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu  – não  contei  ao  senhor  –  e  mercê  peço:  –  mas  para  o  senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha...
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer – mas com ela tapei foi um  soluçar,  e  enxuguei  as  lágrimas  maiores.  Uivei.  Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero.  
O senhor não repare.  Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.
Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher  estendeu  a  toalha,  recobrindo  as  partes.  Mas  aqueles olhos  eu  beijei,  e  as  faces,  a  boca.  Adivinhava  os  cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
 – “Meu amor!...”
Foi assim.  Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo. A Mulher lavou o rpo, que revestiu com a melhor peça de roupa que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas de  lágrimas-de-nossa-senhora.  Só  faltou  –  ah!  –  a  pedra-de-ametista,  tanto  trazida...  O  Quipes  veio,  com  as  velas,  que acendemos em quadral. Essas coisas se passavam perto de mim. Como  tinham  ido  abrir  a  cova,  cristamente.  Pelo  repugnar  e revoltar, primeiro eu quis:  –  “Enterrem  separado  dos  outros, num aliso de vereda, adonde ninguém  ache,  nunca  se  saiba...” Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi,  que  com  a  Mulher  junto  abraçado,  nós  dois  chorávamos extenso.  E  todos  meus  jagunços  decididos  choravam.  Daí, fomos,  e  em  sepultura  deixamos,  no  cemitério  do  Paredão enterrada, em campo do sertão.
Ela tinha amor em mim.
E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.
Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba. (860/3). 
João Guimarães Rosa in: Grande Sertão Veredas. 

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