Por Rosa Amélia
HÁ DIAS, tenho tido um movimento de apenas escrever poesia. Poesia é abstrata, é pura metáfora, posso me revelar e me velar simultaneamente. Hoje tomada por uma necessidade incontornável, gostaria de escrever um conto, uma crônica, algo que tivesse um perfil menos descritivo e mais narrativo.
DAÍ NASCE a pergunta: escrever sobre o quê? Contar o quê? Tenho lido tanta teoria, é bem verdade que tenho lido também bons romances, da ordem do testemunho. Depois de ler tanta coisa boa, pareço gasta, sem inspiração. Não há mais o que dizer... Escrever para quê? Mas eu vivo no universo das palavras, das minhas palavras, das palavras dos outros! Isso é tão conflitante! Palavra, palavra!!!
EU TENHO uma estória de bastante intimidade com as palavras, e sabe-se que, quanto mais íntimos somos uns dos outros, mais conflitos tendem a aparecer. Mas o conflito é bom. Torna-nos mais intensos, íntimos. E eu sou do tipo que, quando entro num conflito com uma palavra ou não a entendo, busco-a sem medo, com uma cobiça investigativa até desnecessária, mas saudável para mim que busco me compreender e faço isso por meio da palavra.
ESSA RELAÇÃO de intimidade começou ainda quando criança, quando na descoberta da linguagem me vi diante de situações que precisava nomear, que precisava registrar, concretizar por meio da linguagem. Foi um namorinho engraçado esse meu com as palavras: elas e eu não nos acertávamos sempre e isso, às vezes, causava graça. E até hoje me pego em situações engraçadas devido a polissemia das palavras ou devido à semelhança fônica entre elas, ou devido a qualquer outro aspecto delas que minha cabecinha formula e associa.
E ERA SOBRE isso que eu queria contar, mas os causos são longos. Essa estória de amor entre mim e as palavras é de longa data e apresenta vários episódios. Houve momentos de grande dor, é claro, mas houve outros muito interessantes e engraçados. Sobre esses que eu estava tentando contar... Falei do meu conflito, mas o caso - causo - eu ainda não contei. Começo a contar agora em conta-gotas, porque são inúmeros.
AS CRIANÇAS, geralmente, aprendem realizando associações, analogias, fazendo inferências sem ter, é claro, consciência de todo esse processo. Comigo não foi diferente. Morava no interior, numa fazenda com os meus pais e um monte de irmãos... Somos quase uma dezena e meia de filhos. Nossa casa, na roça, pelo que me recordo, era bastante frequentada por jovens, porque tinha duas irmãs mocinhas e um bocado de irmãos e alguns deles bem festeiros. Eu sou a décima quarta filha. Dessa forma, lembro de minha casa na roça sempre muito movimentada, não me lembro, de fato, quem eram os frequentadores, mas sempre que penso na minha casa da roça, quando era ainda bastante criança, por volta dos 3 ou 4 anos, tenho esta impressão: muita gente, muito barulho, muitas vozes, sempre ao redor de duas grandes fornalhas com dois tachos enormes e um forno daqueles estilo de roça, fincados ao chão e que funcionam ao calor da brasa.
NESSE LUGAR, minha mãe sempre fazia grandes porções de biscoitos, bolos, petas, pães de queijo. Essa é uma das únicas imagens que tenho dela: ao redor do forno ou da fornalha preparando a comida.
UMA VEZ, já anoitecento, me lembro que já estavam acesas as lamparinas, a casa estava cheia de rapazes e ela - minha mãe - tinha acabado de tirar uma fornada de biscoito. Eu estava ali, ao redor, rodopiando que nem um pião. Depois de minha mãe retirar os biscoitos e trocá-los de forma, porque geralmente os biscoitos eram assados em palha de bananeira ou em formas de latão, minha irmã, Dona Ângela - mais conhecida como Tura -, me chamou e disse "oferece biscoito pros rapazes". Na verdade ela queria só aparecer.
EU? Coitada de mim, me vi diante de um conflito! O que é oferece? Que diabo é isso? Aquela palavra não pertencia ao meu repertório, assim como tantas outras com as quais tive problemas depois. Mas fiquei ali pensando: O que é oferece? Sabia, no entanto, que tinha que me dirigir aos rapazes para oferecer os biscoitos, mas como?
MINHA IRMÃ - Tura - voltou a insistir: "Vai lá e oferece os biscoitos pros rapazes, vai, vai logo".
NA VERDADE, quem devia ter ido era ela, ela é que queria fazer bonito para os rapazes. Do forno ao local onde se encontravam os meus irmãos e os amigos, aquele bando de rapazes que provavelmente estavam todos de olho nas minhas irmãs velhas, porém mocinhas, não era mais que cinco passos. Nesse percurso, com a vasilha de biscoitos na mão, travei um diálogo comigo mesma: oferece? O que é oferece? Deve ser dar os biscoitos a eles! O que devo dizer? Não me explicaram como se oferece alguma coisa a alguém, só me mandaram oferecer... Cinco passos e um dilema com a palavra. Eu e uma única palavra: um dilema, na construção do sentido. Imagine só, eu e um tanto de outras palavras?
DEPOIS DE ATRAVESSAR o percurso tão longo dos cinco passos, disse humildemente:
- Moço, você oferece?
Ao outro:
- Moço, você oferece?
Ao outro:
- E, você, oferece?
E todos caíram na gargalhada. Um dos rapazes pegou a bandeja e disse "Pode deixar que eu ofereço". Essa é a minha primeira memória de conflito com as palavras.
Percebi que tinha feito uma besteira, porque todos riam e chacoteavam de mim. Eu não entendia, não sabia que quando se deseja oferecer a alguém alguma coisa, a palavra correta ou pelo menos a mais aceitável não é oferece; mas, sim, aceita. A palavra oferecer designa a ação, mas o ato se constitui por outra palavra.
ISSO DONA Ângela - Turinha, minha irmã - só me explicou depois. Mas como sou muito gaiata, levei tudo na brincadeira. E hoje me ponho a pensar como construimos os sentidos das palavras, senão pelas nossas relações com os outros, nas situações em que experienciamos a vida. Há outras estórias bem interessantes, mas conto depois, porque se não esta aqui fica muito longa.
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