quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

As três cores do amor em Grande sertão: veredas.

As três cores do amor.
Rosa lendo Rosa e Roncari
Nós temos dos outros muito mais do que de nós mesmos, por isso começo este artigo com uma frase de Riobaldo ou seria de Guimarães Rosa, ah! Não faz diferença: "A gente só sabe bem aquilo que não entende" (p. 378), porque ela resume a minha insegurança e precariedade no meio de tantasveredas e o meu desejo em conhecer aquilo que mais nos humaniza e que quase sempre não compreendemos: o amor. Meu objetivo é apresentar uma reflexão acerca dos amores vividos por Riobaldo, que, na verdade, revelam formas de amar universais as quais contribuem para a transformação, tornam o ser mais humanizado, amadurecido. E Para isso valho das reflexões de Roncari, de Platão e algumas audácias minhas mesmas.
Roncari, em O Brasil de Rosa e em O cão do sertão, compreende os três amores de Riobaldo – personagem de GSV como formas alegóricas, simbólicas para as formas de amar humanas, arquetípicos. Diadorim, Nhorinhá e Otacília, entre tantas passageiras, são as três mulheres que contribuem significativamente para a construção, na narrativa, da vida sentimental de Riobaldo. Para o crítico, Diadorim e Otacília são dois amores opostos. A primeira representa o conflito, o diabólico, "o demônio a ser enfrentado e derrotado; era também o espelho para onde Riobaldo olhava e reconhecia tudo o que aspirava a ser e não era", (Roncari, 2004: 204) e, na mesma medida em que suscitava desejo sexual, incompreendido e rejeitado pelo narrador, despertava nele a vontade da presença, a querência do olhar
"E em mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente – tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Conforme, por exemplo, eu me lembrava daquelas mãos, do jeito como se encostavam em meu rosto, quando ele cortou o meu cabelo. Sempre. Do demo: Digo? Com que entendimento eu entendia, com que olhos era que eu olhava? Eu conto. (Rosa, 2006: 147)
E ainda era a força para a permanência num conflito de ordem maior: a guerra. "É uma amor de possessão e anula a sua (de Riobaldo) vontade" (Rosa, 2006: )  
A segunda é o amor que vem do divino, "se um aquele amor veio de Deus" (Rosa, 2006: 140).  Otacília revela-se para o narrador a superação da ambiguidade constituída por Diadorim. Entre esses dois amores, há ainda um terceiro amor também arquetípico, Nhorinhá, que, na visão de Roncari, "não remetia nem a Deus nem ao diabo, nem ao céu nem ao inferno, não elevava nem rebaixava, era um amor só terreno" (Roncari, 2004: 203). Observa-se que as comparações realizadas para caracterizar o amor por Nhorinhá reforçam ainda mais a ideia de oposição entre os amores por Diadorim e por Otacília. Esses dois extremos é que contribuem para as oscilações no comportamento de Riobaldo.
Segundo a teoria de Bakhtin (2002), o homem é um ser historicamente constituído e dessa forma realiza sua prática discursiva carregada de outros discursos, e, ao analisar a história de Guimarães Rosa, que está situada no contexto das Minas Gerais e num tempo histórico determinado, pelo foco do patriarcalismo. Tal fato  marca o discurso do personagem-narrador  e disso se pode determinar as relações que Riobaldo vai estabelecer com as mulheres que passam em sua vida.  Segundo Rocanri, em O cão do sertão, o reconhecimento do amor acontece de forma tripartida, assim como acontecia para os gregos, de acordo com a função exercida pela mulher; se esposa, se apenas concubina, se participante do mundo intelectual vivido quase sempre pelos homens. Na obra de Guimarães, pode-se reconhecer essas três funções vividas pelas mulheres que marcam a vida de Riobaldo; Diadorim representaria, se considerássemos no caso a sua identidade sexual,  a mulher que participa das atividades  predominantemente masculinas, pois  "Diadorim sabia era a guerra" (Rosa, 2006: 314). Otacília representa a mulher esposa, dedicada ao lar e que cuida do seu homem numa atitude sempre de doação, e, por isso, era vista como quase santa pelo marido e pela sociedade.  
"Otacília penteando compridos cabelos e perfumando com óleo de sete-amores, para que minhas mãos gostassem deles mais. E Otacília tomando conta da casa, de nossos filhos, que decerto íamos ter, Otacília no quarto, rezando ajoelhada diante da imagem, e já aprontada para a noite. (Rosa,  2006: p. 378)
"Otacília, mel de alecrim. Se ela por mim rezava? Rezava." (Rosa, 2006: p. 314)
Nhorinhá é a mulher amante, que representa o amor carnal, que não é casamenteira, já que é de muitos homens e sua função é dar a eles o prazer. "Nonada! A mais, com aquela grandeza, a singeleza: Nhorinhá puta e bela. E ela rebrilhava, para mim, feito itamotinga" (Rosa,  2006: p.311).
 Diadorim, nesse contexto, vista como homem, representa para Riobaldo o conflito do amor homossexual –  mito do andrógino sobre o qual ainda falarei – e que na cultura das Minas Gerais, naquela época, era bastante repelido e condenado.
"De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me Franzi. Ele tinha culpa? Eu tinha culpa? Eu era o chefe. O sertão é assim não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa... Aquilo eu repeli?" (Rosa,  2006: )
Roncari também faz analogia entre Grande Sertão Veredas e a obra de Dante Alighieri – A Divina Comédia: O mesmo percurso vivido por Dante é também vivido por Riobaldo. Claro que aqui recontextualizado em outro momento histórico e outro espaço físico e cultural. O que salta aos olhos é a similaridade entre os conflitos vividos por cada um desses personagens no seu devir, de forma ininterrupta desembocando em transformações e recriações de suas realidades, de seus conflitos existenciais que são característicos do humano. 
Na Divina Comédia,  tem-se uma obra classificada como épica. Assim em Grande Sertão Veredas, têm-se o épico, o lírico e drama, porque a narrativa explora características desses três grandes gêneros. Dante, no meio de sua vida, vê-se perdido em uma floresta escura – metáfora para sua ignorância. Ao tentar sair dela, quando vê uma montanha – metáfora para o possível esclarecimento – sente-se acuado por animais ferozes – metáfora para medo que ofusca o esclarecimento – volta à floresta e encontra com o espírito de Vírgilio que fora chamado, para ajudá-lo, por Beatriz, por quem fora apaixonado na infância. Acompanhado e protegido por Vírgilo, Dante percorre o mundo dos infernos, até chegar ao pé do monte do purgatório, onde ele se passa por Lúcifer e consegue escapar do mundo subterrâneo. Ao subir a montanha do purgatório, Dante e Virgílio, em uma nova odisséia, passam pelos sete terraços que compõem a purgação dos sete pecados capitais, depois de se despedir de Virgílio, Dante é guiado por um anjo até um rio, purifica-se banhando em suas águas – metáfora para o processo de esclarecimento – depois de encontrar-se novamente com Beatriz. Já no paraíso, Dante percebe um mundo dividido em dois planos: o material e o espiritual. Beatriz e Dante, ao olharem fixamente para o sol – metáfora do esclarecimento em sua completude – são transumanizados. Elevados aos vários céus, encontram-se com figuras importantes como Tomás de Aquino e o imperador Justiniano, chegam ao céu de estrelas fixas e ali Dante é interrogado acerca de questões filosóficas e religiosas. Depois de responder, recebe autorização para entrar no céu cristalino, porque adquiriu a capacidade de compreender o mundo espiritual e reconhece o amor como sentimento emanado diretamente da força divina. Nesse instante, separa-se de Beatriz.
Reconhece-se na história de Riobaldo, com algumas variações, a mesma história que pode ser vista como um palimpsesto humano, já que todo ser, para chegar ao conhecimento, à sabedoria deve vivê-la de alguma forma. Riobaldo passa pelo inferno, pelo purgatório, e chega ao paraíso, em sua travessia do ser ignoto para o ser sábio, vive os mesmos conflitos de Dante. Riobaldo vive o sertão das veredas mortas, tenta cruzar o liso do Suassuarão e somente na segunda tentativa consegue, vive o éden dos buritis-altos, representando respectivamente as etapas vividas por Dante na Divina Comédia. Riobaldo é acompanhado durante a sua travessia, de forma simbólica, quase mítica, por Joca Ramiro por quem tem grande admiração desde jovem, uma vez que ele é o seu herói. Durante a sua travessia encontra Diadorim, por quem sente grande amor. Diadorim o acompanha e faz parte da transformação vivida por Riobaldo, contribui para as suas reflexões acerca do mundo sensível, que segunda a filosofia socrática, é condição para se viver o mundo inteligível. Diadorim, assim como Beatriz desaparece, morre no momento em que o conflito de Riobaldo se desfaz, aquilo que era obscuro passa a ser entendido.  Assim como Dante se purifica nas águas do rio localizado no paraíso, a travessia de Riobaldo é feita em muitos rios, alguns de águas claras, outros de águas turvas, e o Urucuia de águas límpidas. Por este rio ele tem maior apreço.
Dante, durante a sua passagem pelo purgatório, defronta-se com um carro que, ao lado direito, traz três damas: uma vestida de branco; outra, de vermelho; e outra, de verde, em alegoria às três virtudes teologais: fé, caridade e esperança respectivamente. Essas mesmas cores representam o amor perfeito na figura feminina de Beatriz ao aparecer com um vestido que contém as três cores, já que reúne em si as três virtudes teologais representadas por tais matizes. Em Grande Sertão Veredas, Nhorinhá, por estar de vermelho em seu primeiro encontro com Riobaldo e por ser uma "daquelas prostitutas doadoras do amor sexual e sensível, sempre acessível e ao alcance de todos, como as frutas sem dono das beiras de estrada", é, segundo Roncari (2007: 127), associada à Caridade. Otacília, por ser apresentada pelo narrador como se tivesse numa moldura, santificada e com aspecto sempre de muita alvura, é associada (ibidem, p. 128) à Fé, "a Nossa Senhora um dia em sonho ou sombra que aparecesse, podia ser assim" (Rosa, 2006: p. 151). E o verde é associado a Diadorim, porque Riobaldo, ao encontrar-se à primeira vez com o menino, a primeira característica que destaca são os olhos verdes dele. E já naquele momento sente a ambiguidade de sentimentos dentro de si mesmo, que pode ser associado à ambiguidade da esperança, que é um bem para a humanidade, apesar de ilusória. Segundo Roncari, porque Riobaldo não pode viver um amor perfeito, ele vive cada dimensão do referido sentimento com uma mulher diferente. E o fato de viver as várias dimensões do amor com uma mulher diferente não diminui o afeto e a grandiosidade do sentimento em relação às outras.

Sensualidade X sexualidade
Em Brasil de Rosa, Roncari (2004: 204), ao analisar a sensualidade e a sexualidade de Riobaldo, coloca-o no mesmo nível dos outros jagunços, "pois ele (Riobaldo) não tinha menos controle de si do que os outros jagunços, nem vivia os prazeres da carne obsessivamente, ocupando com eles a maior parte da vida". No primeiro caso, observa-se que o herói-narrador é capaz de amar a três mulheres simultaneamente, mas em planos diferentes, "Coração cresce de todo lado. (...) Coração mistura amores. Tudo cabe" (Rosa, 2006: 186). Observa-se que "o que ele fazia era demarcar uma fronteira muito nítida entre os três amores: o carnal, de Nhorinhá, o aparente homossexual[1], erótico e incestuoso, de Diadorim, e o elevado, de Otacília, porém para cada um parecia ser vivido por ele como um complemento do demais" (Roncari, 2004: 205). No segundo caso, viveu sem limites os namoros passageiros, as relações com as prostitutas.
"Nesse meu caminho fazendo, tirei muita desforra: faceirei.  Severgonhei. Estive com o melhor de                            mulheres. Na malhada, comprei roupas, O vau do mundo é alegria" (Rosa, 2006: p 288).
Inclusive, cometeu até estupro, atitude da qual, mais tarde, não se vangloria e pela qual sente aversão, "relembrando minha vida para trás, eu gosto de todos (os amores), só curtindo desprezo e desgosto é por minha mesma pessoa antiga" (Rosa, 2006: 140). 
Os mitos do Amor em Grande Sertão Veredas
Nhorinhá: Pandêmia
A relação com Nhorinhá, apesar de entre eles ter ocorrido apenas um encontro, foi intensa "feito casamento, esponsal" (Rosa, 2006: 33), o que Riobaldo deixa revelar quando  relata, com intensidade sensual e certa saudade, os momentos que tiveram juntos
 "Ao que no portal, vi uma mulher moça, vestida de vermelho, se ria. (...) Eu nem tinha começado a conversar com aquela moça, e a poeira forte que deu no ar ajuntou nós dois, num grosso rojo avermelhado. Então eu entrei, tomei um café coado de mão de mulher, tomei refresco, limonada de pêra-do-campo. Se chamava Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pelo, alegria que foi"( Rosa,  2006: 33)
 Nhorinhá é a representação de Afrodite, não a nascida das ondas do mar, a de ouro, filha de Urano, personificação do céu. Ela está situada num mundo inferior, no mundo dos sacrifícios ao contrário: aos deuses olímpicos se oferecem sacrifícios geralmente representados por animais brancos, em Grande Sertão Veredas, o animal que é sangrado, no momento em que Riobaldo se encontra com Nhorinhá, é um boi preto, fato que revela o submundo em que vive Nhorinhá.
Esta é a representação de Afrodite pandêmica, defensora do prazer pelo prazer, simbolizado pela atração sexual com o poder de satisfazer ao outro e desfrutar de todo e qualquer desejo amoroso. Nhorinhá está presente nas recordações de Riobaldo, mas não é um amor idealizado com o qual ele planeja e quer viver outros momentos. Segundo Roncari é uma Afrodite acaipirada. É um amor baixo, carnal, terreno. Era o amor dos sentidos, obsessivo.
Otacília: Deméter
Ao contrário de Nhorinhá, Otacília é o amor idealizado, com quem o herói planeja viver uma vida de paz. Ela representa a paz celestial, é símbolo da deusa Deméter, padroeira do casamento, alegoria à fertilidade da terra cultivada. Assim como Deméter significa mãe terra, aquela que de tudo e cuida do amor, Otacília é para Riobaldo a mulher santa com a qual deseja se casar e ter sua prole, a qual vai dele cuidar e por ele rezar. Diferente dos outros amores, o sentimento por Otacília é um sentimento cultivado. Ela representa o amor platônico, vista por Riobaldo, pela primeira vez, no enquadro de uma janela assim como uma pintura de uma santa em uma tela. Ele, numa posição física e moralmente subordinada, segundo Roncari (2004: 242), de baixo para cima, como se estivesse a prestar culto à moça.
           "Conforme contei ao senhor quando Otacília comecei a conhecer, na serra de gerais Buritis Altos,                               nascente de vereda, fazenda Santa Catarina. Que quando. Só vislumbrei graça de carinha e riso                                           e  boca, e os compridos cabelos, num enquadro de janela, por uma mal aceso de                                                               lamparina " (Rosa,             2006: p.188).
Acrescentando a isso, Otacília traz, no nome, duas vezes, o número oito, oito é o número de letras que tem o seu nome e oito - do latim octo[2] – é símbolo, para quase todas as tradições religiosas, de equilíbrio, superação, mediação, integração com o infinito. E, para Riobaldo, Otacília representa tudo isso tanto no plano psicológico, espiritual, afetivo, quanto no plano material. Ela por ele reza, dá-lhe segurança e, além disso, é herdeira de um fazendeiro. 
Ainda pode se acrescentar que oito é o número-chave da criação, e deitado é o signo matemático do infinito, a leminiscata. Otacília é, para Riobaldo, o oposto de Diadorim, tudo nela era pacífico. Tudo nela revela-se compreensão e perdão. Representava o amor que traz a elevação espiritual e a tranquilidade.   
Ela era risonha e descritiva de bonita; (...) minha Otacília, fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença. (idem,  189)
"Otacília, estilo dela, era toda exata, criatura de belezas." (idem, 140)
Diadorim: Artêmis
"A relação entre Diadorim e Riobaldo faz-se de encontros e desencontros, semelhanças e diferenças, harmonias e contrastes, atrações e repulsas" (Roncari, 2004: 215). Eles seriam como o sol e a lua, os irmãos Apolo e Artêmis. Estes eram gêmeos, filhos de Zeus e Leto, perseguidos por Hera por serem filhos da traição do marido. Artêmis, lua, símbolo da colheita, da natureza e do parto, era vista como uma guerreira, assim como Diadorim. Apolo, sol, tinha elevada moral e capacidade intelectual que o levaram a ocupar uma posição de cardeal como promotor da civilização, fato que pode ser associado à ascensão de Riobaldo no bando e colocá-lo na narrativa no mesmo paradigma de Apolo. Na perspectiva de Roncari (2006), o caráter fabuloso da narrativa de Guimarães Rosa acontece a partir do momento em que Riobaldo se encontra com o menino (Diadorim) durante a travessia do rio São Francisco. Ali, o herói sente o amor natural, o que não se cultiva, que não é fruto da dedicação, é fruto do inexplicável, do sobrenatural, do destino, por isso a idéia de que o amor por Diadorim fosse coisa do demo, "Amor desse, cresce primeiro; brota é depois. (...) Então o senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? (Rosa,  2006: 139)
A própria narrativa explica o poder dos olhos verdes de Diadorim que causam, simultaneamente, repulsa, atração, desejo pelo aprazível e o conflito pelo não entendível. Havia entre Diadorim (Reinaldo) e Riobaldo uma comunicação superior à da fala, aquela que, por mais que o corpo renegue, que os tabus sociais condenem, existe inexplicavelmente, deixando-os  a mercê do próprio amor, escravos por querência, em estado de plenitude pela servidão, submissos e proprietários incondicionais um do outro, com vontade nenhuma de estar longe e com receio de que outras relações interpusesse a esse amor, que apesar de conflituoso, sofrível, remete à felicidade e à esperança.
 A doçura do olhar dele me transformou para os olhos de velhice de minha mãe. Então eu vi as cores do mundo (idem, 148).
De Diadorim não me apartava. Cobiçava de comer e beber dos sobejos dele, queria pôr a mão onde ele tinha pegado. Pois, por quê? Eu estava calado, eu estava quieto. Estremecia sem tremer. Porque eu desconfiava era de mim, não queria existir em tenção soez. Eu não dizia nada, não tinha coragem. O que tinha era uma esperança? (idem, 316). 
Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele" (idem, ).
Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar cara e estar tristonho, e eu perdia o sossego. Era ele estar longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? (idem,  146)
Minha amizade com Diadorim estava sendo feito água que corre em pedra, sem pêpa de barro, nem pó de turvação (idem, 199).
O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente – "Diadorim, meu amor..." Como era que eu podia dizer aquilo? (....) Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas com minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim – que não era de verdade. Não era? (idem, 291).
 Como é que posso explicar ao senhor o poder do amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. (...) Diadorim tomou conta de mim (idem, 193).
"Deixei meu corpo querer Diadorim; minha alma? Eu tinha recordação do cheiro dele. Mesmo no escuro, assim, eu tinha aquele fino das feições, que eu não podia divulgar, mas lembrava, referido, na fantasia da idéia. Diadorim – mesmo bravo guerreiro - ele era pra tanto carinho: minha repentina vontade era beijar aquele perfume no pescoço: a lá, aonde se acabava e remansava a dureza do queijo, do rosto... beleza – o que é?" (idem, 576).
Alegria minha era Diadorim (idem, 314).
Mas Diadorim, por onde queria, me levava. Tenho que, quando eu pensava em Otacília, Diadorim adivinhava, sabia, sofria (idem, 198).
 A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar (idem, 146).
Em Grande Sertão Veredas tudo é simbólico, as metáforas que representam o amor por Diadorim não são apenas aquelas que remetem aos desejos sentidos com prazer e sofrimento pelos corações dos apaixonados.  Esse amor, por ser de conflito, inexplicável, inaceitável, sobretudo na jagunçagem, revela também um caráter de coisa sofrível, de sentimento que remexe com a tranquilidade dada pelo amor de Otacília. É um sentir tenso, contraditório, uma vez que Riobaldo não entende a forte atração que sente por Diadorim, muito menos compreende a força quase coercitiva que este exerce sobre ele deixando-o numa atitude de sempre subserviência. É um sentir dolorido, ofuscado, denso, inalcançável "Diadorim era a minha neblina" (idem, 24).  Roncari apresenta, a partir da fala de Riobaldo, três diferentes metáforas que remetem para a dureza desse amor.  A primeira delas é a tentativa de definir o amor.
Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso? (...) O amor? Pássaro que põe ovos de ferro. (idem, 61).
Quando Riobaldo define o amor valendo-se do seu contrário: "O ovo que deveria trazer a vida sob as suas cascas finas e delicadas, traz a morte na sua dureza" (idem, ibidem, 220), representa o amor, fruto do ovo - símbolo  da vida, como o ferro, que remete a coisa morta, fria, artificial, pesado, bruto. Que é como Riobaldo enxerga o amor que sente por Diadorim, sentimento que gera vida dentro dele mas que não tem vida fora.
A segunda delas não é diferente da anterior: é o embalo do ferro dentro de uma cabaça como prenúncio para a não esquecimento do sentimento que move os corações dos apaixonados e também à morte.
"Diadorim restava um tempo com a cabaça na mão, eu olhava para ela (...) Mas balançou a cabaça, tinha um trem dentro, um ferro, o que me deu desgosto; taco de ferro, sem serventia, só para produzir gastura na gente. "- Bota isso fora Diadorim!" (...) Ela não contestou, e me olhou de um hesitado jeito, que se eu tivesse falado causa impossível. Em tal, guardou o pedaço de ferro na algibeira. E ficava toda-a-vida com a cabaça nas mãos" (Rosa, 2006: 62).
            O objeto que Diadorim sacode dentro da cabaça, assim como o ovo também é de ferro, remetendo a mesma frieza, artificialidade, bruteza, à morte, e indo além, nas mãos de Diadorim que o guarda no bolso, o balançar anterior, remete à necessidade de ela relembrar as ameaças do amor que eles vivem. Remete à possível fraqueza de viver tal sentimento, uma vez que estão tão envolvidos. 
A terceira metáfora é a palmeira por esconso, que guarda no seu ventre um poço ovalado, fonte de vida, ideia que se confirma, quando Riobaldo, ao se abaixar pra pegar água de beber, vê "um bicho asqueroso, uma rã repulsiva como a própria morte. No entanto ela estava parindo os seus cordões ovíferos de albumina, como se deixasse escapar por eles a vida" (Roncari, 2004: 221). A esse conjunto, pode se relacionar, não apenas à vida, como também ao amor entre Diadorim e Riobaldo. O amor que poderia ser manancial da vida. Nesse caso, a rã parideira na água que causa asco em Riobaldo e é também o prenúncio da vida, revela-se representação alegórica para o sentimento dele para com Diadorim: desejo e asco. Isso fica evidente na fala dele, quanto teve desejo e medo de que Diadorim se declarasse e a julga culpada por esse amor que ele sente recíproco.
Era por esconso por uma palmeira – duma de nome que não sei, de curta altura, mas regrossa, e com   cheias palmas, reviradas para cima e depois para baixo até pousar no chão com as pontas. Todas as palmas tão lisas, tão juntas, fechavam como um coberto remedando choupã de índio.(...) Aí a gente se curvar, suspendia uma folhagem, lá entrava. O poço abria redondo, quase, ou ovalado. Como no recesso do mato. Ali intrim, toda luz verdejava. Mas a água, mesma, azul, dum azul que haja – que roxo logo mudava. A vai, coração meu foi forte. Só cismei: se Diadorim segurasse em mim com os olhos, me declarasse as todas as palavras? Reajo que repelia. Eu? Asco! Diadorim parava normal, estacado, observando tudo sem importância, nem provia segredo. E eu tive decepção de logro, por conta desse sensato silêncio? Debrucei, ia catar água. Mas, qual, se viu um bicho – rã brusca, feiosa, botando bolhas que à lisa cacheavam.(...) Diadorim desconversou, e se sumiu por lá, por aí, consoante a esquisitice dele, de sempre às vezes desaparecer e tornar a aparecer, sem menos. Ah, quem faz isso não é por ser e se saber pessoa culpada? (Rosa, 2006: 62).
            Na mitologia grega, a guerreira Artêmis é associada à lua, porque esta apresenta duas faces, uma que se deixa conhecer por todos e outra, obscura, que é verdadeiro enigma, mistério. Assim a guerreira de Grande Sertão Veredas se revela, é, enquanto Diadorim, enigmática, puro mistério, sobretudo, para Riobaldo; e revela-se o contrário enquanto Reinaldo, um jagunço aguerrido, que luta para vingar a morte do pai.
Diadorim "que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e muito mais para amar e nunca ter gozo de amor" (idem, 605) guerreia por dois motivos: um deles, já foi dito, é vingar a morte do pai e o outro, que não pode estar às claras, é manter Riobaldo nessa luta, não porque precisa dele para a guerra, mas porque ele é o seu amor. Essa sua face só a Riobaldo revela, fato que o deixa mais confuso. Ela luta contra todas as possibilidades que possam tirar o amado da guerra, ou seja, de perto dela, por isso repudia, primeiramente, a relação com Nhorinhá, demonstrando forte ciúme. Depois tem o mesmo sentimento em relação à Otacília, já que percebe por mais de uma vez que o amado poderia embrenhar-se nos caminhos do amor de Otacília. As passagens seguintes revelam a reflexão de Riobaldo em relação ao comportamento de Diadorim (Reinaldo).
Parecia que não gostava de me ver em comprida conversa amiga com os outros, ficava quasezinho amuado (idem, 149).
Você se casa, Riobaldo, com a moça da Santa Catarina. Vocês vão casar, sei de mim, se sei; ela é bonita, reconheço, gentil moça paca, peço a Deus que ela te tenha sempre muito amor... estou vendo vocês dois juntos, tão juntos, prendidos nos cabelos dela botão de Bogari (idem, 377).
 O ciúme de Diadorim por Riobaldo não se refere apenas aos dois arquetípicos: Nhorinhá e Otacília. É um sentimento generalizado, que fica evidente quando Diadorim propõe a ele um pacto de abstinência, que é aceito; mas não é cumprido por ele.
Na verdade, Diadorim era quem regia os passos de Riobaldo.  E isso, de certa forma, era uma ameaça ao ser autônomo que Riobaldo buscava ser. Por isso talvez, tantas vezes ele tenha se enfurecido com as atitudes de ciúmes de Diadorim, primeiro porque percebia o amor que ela o tinha e não o compreendia, aliás, repugnava-o; e segundo porque desejava para si a mesma autonomia expressa nas atitudes da amada. Aqui fica clara a servidão e a prisão à pessoa amada pela própria vontade da pessoa que ama.  
"Aqui digo: que se teme por amor; mas que, por amor, também, a coragem se faz" (idem, 456).
Diadorim também é o amor "prata que se opõe ao ouro" – Apolo – Deus sol. É o amor que confunde, mas que ensina, ensina Riobaldo a enxergar o amável do simples, as perfeições das simplicidades, no meio da rudeza jagunça. Diadorim é quem conduz a travessia do amado para o mundo de beleza que há no sertão
            Ai, falei dos pássaros, que tratavam do seu voar antes do mormaço. Aquela visão dos pássaros,                               aquele assunto de Deus, Diadorim era que tinha me ensinado(idem, 189).
Essas formas de o amor se revelar para Riobaldo, de se fazer presente, de o confundir, de o deixar à margem de si mesmo, de o levar a reflexão e a uma ascensão espiritual fazem que ele reconheça o nonada humano que se é diante das mulheres que mais amou: Diadorim e Otacília.  
             Um homem é um homem, no que não ver e no que consome, Ah, não. Otacília, eu não merecia.                                      Diadorim era um impossível. Demiti de tudo (idem, 491).

O mito do Andrógino e Diadorim.
"No início, havia três gêneros humanos, alguns que eram todo homem, todo mulher ou metade homem e mulher. Estes seres eram duplos e podiam ser compostos de dois homens, duas mulheres ou os andróginos: um homem e uma mulher unidos pelo ventre, sendo dotados de dois rostos numa mesma cabeça, voltados para as costas, assim como seus órgãos sexuais. Além de possuírem quatro braços e quatro pernas, movimentando-se sobre os oito membros, de forma circular. Por terem desafiado os deuses, Zeus dividiu-os em dois, encarregando Apolo de fechar suas feridas. O deus, para que sempre se lembrassem do castigo, voltou seus rostos para o lado do corte, mantendo os órgãos reprodutores no lado das costas, a fim de que a raça fosse extinta, já que as metades separadas não poderiam copular ao se aproximarem. Zeus, porém, arrependeu-se e resolveu intervir. Passou os referidos órgãos para frente, para que fosse possível a continuidade da espécie. Entretanto, permanecia no âmago dos seres divididos, a lembrança de sua forma primitiva, razão pela qual os nascidos dos homens duplos se amam entre si, como as mulheres nascidas das mulheres duplas também se amam umas às outras, as mulheres nascidas dos Andróginos amam os homens, e os homens nascidos desses mesmos Andróginos sentem amor pelas mulheres".
Roncari (2006) associa a figura de Nhorinhá ao mito do andrógino. Destaca-se que, salvo pelo nome que carrega o masculino Nhô e feminino Nhá – Iaiá, não se percebe nenhuma outra relação entre a personagem e o mito. Nhorinhá é em tudo Afrodite[3], desejo carnal apenas, talvez pela história da descendência dessa figura mítica é que o crítico busque tal relação. Nhorinhá é o amor pandêmico, Otacília é o Amor Celestial – Urânia.
Diadorim reúne em si as forças do masculino e do feminino, Diadorim é a figura associada à lua, que segundo a mitologia, é filha do rei sol e da mãe terra, e reúne as características dos dois deuses – sol e terra.
...porque o masculino de  início era  descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos (Platão,  22).
Diadorim é a força que move a narrativa, o elemento fabuloso da história de Riobaldo, o ser que ama e sente ódio, que encarna a sensibilidade no olhar e a bruteza nas ações e nas falas, é a figura na obra de Guimarães que impulsiona Riobaldo, que dá coragem, que estimula e também causa medo, causa insegurança e ensina a sensibilidade ao amado e possibilita ele ser ele mesmo.
Diadorim é o andrógino que circula entre os dois mundos. É por meio desse amor andrógino que Riobaldo tem ascese e chega ao amor celestial. É por meio dos conflitos gerados pelo sentimento ambíguo que tem por Diadorim(Reinaldo) que Riobaldo começa a refletir sobre os próprios sentimentos. Além disso, o feminino do andrógino Diadorim só aparece quando a sua parte masculina – o Reinaldo – deixa de existir, ou seja, a separação, na obra, representada pela morte, enfraquece de tal maneira que o feminino não pode viver sem o masculino.
Pode-se considerar também que Diadorim e Riobaldo sejam almas gêmeas, representando eles dois a própria figura do andrógino que fora separado pelos deuses por se revelar forte demais e causar temor a eles.
Eram por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses (idem, 23).
Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós (idem, ibidem).
E por estarem separadas sentem se enfraquecidas e, por que há saudade e falta uma metade,  buscam pela outra eternamente aquilo que, de certa forma, já lhes pertenceu, que lhes completa e que irá saciar todas as angústias.
era como se eu tivesse caçar emprestada uma sombra de amor" (Rosa: 2006, 65)
Deixei meu corpo querer Diadorim; minha alma? Eu tinha recordação do cheiro dele (idem, 576).
Por conseguinte desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ele se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro , no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. (Platão: 1983, 24).
                Assim, pode-se compreender tanto a morte de Diadorim quanto sua constante busca por manter Riobaldo sempre, como o conflito que alimenta o andrógino, o desejo de estar perto, mesmo sem aceitar o sentimento, "Eu sei: quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade" (Rosa: 2006, 552).
E assim podemos entender as palavras de Guimarães, ou serão de Riobaldo? Ah, não importa! O importante é que nunca seremos os mesmos depois de Grande Sertão Veredas, pois a vida é assim:
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta esfria, aperta e daí afrouxa, sossega depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava (idem, 318).
                        Ah, mas, há!!!



[1] O amor homossexual também pode ser justificado pelo mito do andrógino, como pode se comprovar na leitura de O Banquete  de Platão.
[2] O número oito reúne um conjunto de significações positivas: além das citadas no texto, é universalmente tido como o número do equilíbrio cósmico, o número das direções cardeais e intermediárias das rosa dos ventos; tem valor de mediação entre o quadrado e círculo, a Terra e o Céu, no xintoísmo, representa o equilíbrio central.
[3] A união dos deuses Afrodite e Hermes olímpicos resultou em um ser de esplêndida beleza ao qual foi dado o nome de Hermafrodito - aquele que apresenta, concomitantemente, tecido ovariano e testicular.

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