quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

A filosofia do contraditório em Blaise Pascal

 Por Rosa Amélia
Ao analisar a história da humanidade, percebe-se a necessidade que o homem sempre teve de produzir conhecimento, seja para produzir ciência e tecnologia, seja para conhecer a si próprio. Para Pascal, com quem pretendemos dialogar nesta reflexão, há uma justificativa para a busca incansável pelo conhecimento realizada pelo homem, que é o fato de ele ter uma patologia: “a doença principal do homem é a curiosidade inquieta das coisas que não pode saber; e não é pior para ele permanecer no erro do que nessa curiosidade inútil” (41-2: 18, 2002). Partindo dessa ideia de Pascal, destaca-se que ele, tendo vivido no século XVII, sofreu, paradoxalmente, as consequências dessa doença chamada curiosidade.
Dessa forma, é necessário compreender o cenário político, cultural e filosófico que antecedeu a Era Moderna da história da humanidade, em que viveu Blaise Pascal. Esse momento da história da humanidade tempo revela-se bastante conflituoso; contudo, aberto às novas ideias, às mudanças necessárias para uma nova perspectiva de pensar o mundo por meio da razão e pela capacidade de realizar abstrações. Os séculos XIV e XV foram importantes em decorrência dos vários acontecimentos que levaram o homem a buscar o pensamento racional e a perspectiva antropocêntrica como forma de explicar o mundo, os conflitos humanos, as questões políticas, o fazer científico e, sobretudo, o pensar filosófico.
Reconhece-se que os pensadores desses séculos, Guilherme de Ockham,  Márcílio de Pádua, Alighieri, Petrarca, Nicolau de Cusa, Montaigne, Morus, Bocaccio, Rotherdan, entre outros, foram grandes empreendedores, porque a empreitada filosófica, cultural, social e política era contra um sistema robusto que fora construído ao longo de séculos e sustentado por grandes filósofos patrísticos e escolásticos, tais como Agostinho e Aquino, respectivamente,  os quais, a partir das ideias platônicas e aristotélicas, fundamentaram muito consistentemente as ideias teocêntricas. Nas palavras de   Rossi (2001), parece ter sido a Idade Média um período de poucas revoluções intelectuais, apesar de ter sido a época em que se deu a criação às grandes universidades, lugar de saberes privilegiados e que deram aos intelectuais a dignidade da remuneração.
O Medievo, claro, tem a sua importância cultural, sobretudo do ponto de vista filosófico e religioso. Vale lembrar que as lutas e as guerras, nesse contexto, foram empreendedoras no sentido de alargar o domínio de terras e, com isso, o poder econômico e político dos reinos vencedores. A sociedade era bastante estratificada: nobreza, clero e servos compunham as classes. A nobreza era composta pelos senhores feudais, ligados fortemente ao poder clerical, os quais determinavam juntos os dogmas religiosos e os compromissos sociais da classe subordinada, praticamente toda analfabeta. A arte era comprometida com os temas religiosos, assim como a filosofia. Dante teve grande destaca na elaboração da imagem do purgatório, do inferno, tão bem construídos pelo catolicismo.  Nessa época, citando White (apud Rossi, 2001: 15), vale lembrar que foram construídas inumeráveis e admiráveis igrejas e catedrais, bem como conventos e moinhos movidos a ventos e foram lavrados o campo a arado pesado e foi inventado o estribo que mudou a natureza dos combates. A economia girava em torno da produção agrícola, era uma sociedade fortemente agrária. O poder político e econômico estava, fortemente, ligado ao poder do clero, a forma de governo era absolutista.
Diante desse cenário e dos conflitos originados em função da luta pelo domínio de terras entre árabes e os romanos/europeus, os humanistas propuseram a questionar esse sistema e se colocaram numa perspectiva mais humanista diante das questões sociais. Destaca-se também a necessidade de eles se posicionarem diante também dos mistérios que justificavam, muitas vezes, as ações do grupo de pensadores do Medievo: a fé incondicional em um Deus que determina todos os acontecimentos no mundo, inclusive os abusos de poder por parte do próprio clero.
A evolução do pensamento humano alcança um patamar, antes, nunca visto. Os pensadores, inspirados pelo espírito grego, racionalista e pagão, desenvolvem o que foi denominado como ideário renascentista. O Renascimento, enquanto movimento cultural, político e filosófico, teve início no século XIV, com o apogeu no século XV e expandiu-se até o século XVII, ou seja, começa nos anos trezentos e segue até os anos seiscentos. A cultura renascentista, na verdade, inicia-se com a decadência do sistema feudal e absolutista e com a valorização do mercantilismo, que marca o início do capitalismo e estabelece o comércio em função das conquistas ultramarinas, as quais fortalece o sistema financeiro.  
Na verdade, a cultura renascentista sustentou-se em quatro pilares: o primeiro pilar é a razão como fonte de todo o conhecimento, a razão como capacidade de pensar abstratamente; segundo pilar é o empirismo como forma de provar as ideias e os fatos fora do domínio da evidências, explorando a razão, o pensamento abstrato e também como forma de caracterizar a experiência como determinante para a comprovação dos fatos, para retirá-los do campo da fé; o terceiro pilar é o ideal antropocêntrico, que compreende o homem como o centro do desenvolvimento do conhecimento científico, distanciando-se da prática teocêntrica, a partir da qual se desenvolvia um conhecimento baseado na fé; e o quarto pilar é o individualismo, que passou a destacar o homem como centro de toda a produção intelectual, artística e filosófica.
Observa-se, assim, que ocorre um salto grandioso nas formas de pensar o mundo e de agir diante dele tanto nas artes, na ciência, na filosofia. O modus operandis humano já não é de subserviência e de subalternidade às ideias teocêntricas. O homem passa a se enxergar como a perfeita criação do Criador, sendo capaz de atuar no mundo para o próprio progresso, sobretudo no campo da ciência, a partir da qual começa-se a descontruir os dogmas e medos seculares constituídos a partir do espírito religioso e dogmático no sentido de conduzir e dominar as civilizações.
Destacam-se, nesse movimento, algumas personalidades, no mundo das artes, Shakespeare, Cervantes, Gregório de Matos, Gângora, Quevedo, e no mundo da ciência e da filosofia, Copérnico, Galilei, Kepler, Tycho,  Pascal, Descartes. Essas personalidades acabaram por influenciarem umas às outras, numa relação de entusiasmo, às vezes, e de medo e autoridade, outras. Uns mais presos às ideias teocêntricas, outros mais contundentes na sua crítica ao dogmatismo religioso.
No século XVII, em função da insatisfação dos intelectuais com a perspectiva racionalista que não conseguia explicar os principais conflitos humanos, eclode, sobretudo nas artes, o estilo barroco. Nessa arte, o homem expõe o seu conflito entre a valorização do profano e do sagrado, entre a adoção da fé ou da razão para explicar o mundo e a si mesmo, entre a crença no homem em suas finitas possibilidades ou a crença em Deus e no seu supremo poder. Observa-se, tanto na arquitetura quanto na literatura, o jogo entre esses dois universos: o mundano e o celestial. O homem constrói inúmeras e imensas igrejas no sentido espalhar e revelar o poder de Deus. Nesse processo de produção arquitetônica, é necessário pensar matematicamente, logo o homem sente-se grandioso diante de si mesmo e tem a necessidade de, cada vez mais, por si só, realizar experiências matemáticas, científicas e crescer. O conflito está posto.
Nas raízes da grande revolução científica do século XVII, se situa aquela compenetração entre técnica e ciência que marcou (para o bem ou para o mal) a inteira civilização do Ocidente e que, nas formas que assumiu nos séculos XVII e XVIII (...) não existia tanto na civilização antiga como também naquela da Idade Média. (verificar a citação, Rossi, ver página).
Reconhece-se que a produção artística não está desvinculada da produção e de um ideário filosófico. Assim, ao se pensar na arte produzida no século XVII, compreende-se que ela é fruto das reflexões e do pensamento filosófico da época. Logo, o que se pode concluir é que se, na arte, o homem se revelava contraditório, na produção da filosofia não pode ser diferente. É o que tentaremos mostrar agora, considerando que alguns pensadores da filosofia, com certeza, influenciaram a produção artística da época, nesse modo paradoxal de ser e de pensar o mundo, a fé, Deus, o universo.
No referido século, como pensador, matemático, filósofo, destaca-se a figura de Blaise Pascal. Ao que se percebe, pelos seus estudos e escritos, foi um homem que se dividiu entre os clamores da fé e o pensamento racional. Essa dualidade pode ser decorrente de dois fatores: o científico/intelectual, cuja influência ele recebeu pela via teocêntrica e pela via antropocêntrica; e o conflito humano, individual, natural para pessoas que não se contentam com respostas superficiais para questões mais profundas.
Em sua biografia, consta que ele foi uma criança de inteligência extraordinária, além de questionador, apresentava réplicas inusitadas para questões sem respostas até aquela época. Cresceu uma pessoa curiosa, apesar de julgar a curiosidade como uma doença e uma atitude inútil, uma vez que não há conhecimento que não se consegue alcançar. Demonstrava-se insatisfeito com as superficialidades que eram dadas como justificativas para algumas questões relacionadas à filosofia, à fé e à ciência. Curiosidade e insatisfação parecem compor, logo de início, as suas ideias contraditórias. Já aos dezesseis anos, tinha escrito o Tratado sobre as Cônicas. Ele, observando-se como homem produtor de ciências, como grande matemático que foi, dividido entre as concepções idealistas e racionalistas do mundo, entendeu que há questões na vida humana que não podem ser explicadas pela razão. Isso explica bastante o seu caráter contraditório. Como estudioso da matemática, concebeu a primeira máquina de calcular da história da humanidade, provando que os conceitos abstratos que permeiam a mente humana podem se concretizar em matéria, em experiência e em máquinas.  
Considerando o espírito contraditório do autor, é possível reconhecer nos Pensamentos de Pascal, a dualidade característica do estilo barroco, que explora a ambiguidade, os paradoxos, o conflito entre a razão e a fé. Parte-se do princípio que arte e filosofia são indissociáveis, sobretudo para os pensadores do passado que, muitas vezes, reuniam no seu fazer a habilidade artística e a filosófica.
 Considerando que a linguagem artística, em que a conotação por meio das figuras de linguagem constitui o cerne e considerando que o discurso filosófico se concretiza a partir da linguagem, é possível reconhecer em alguns filósofos a arte de escrever literariamente ou, ainda, é possível reconhecer toda a influência da filosofia na arte. Dessa forma, ao ler Pascal, o que mais se destaca em seu discurso filosófico é o jogo com a linguagem figurada, a representação do contraditório que se dá a partir do uso da antítese e do paradoxo, figuras de linguagens predominantes no estilo barroco presente no homem do século XVII.
O forte espírito religioso de Blaise revela-se em vários momentos de sua obra, mesmo ele sendo um homem da matemática e da ciência, contradição bastante aparente, no seu discurso, observa-se uma fé inabalável nos preceitos da fé cristã. Para justificá-la, ele afirma que o fato de Jesus ter sido profetizado, ter vindo e vivido a profecia, o fato de muitos outros homens o adorarem até aquele tempo levam-no a crer cada vez mais na verdade dos livros sagrados, os quais perduram por muitos séculos; ele ainda afirma que “quanto mais ele os examina, mais descobre verdades” (*737: 235, 1984).
Entre essas verdades, ele aponta o fato de Deus querer do homem o exercício da humildade, da solidariedade e da caridade vivida por Jesus. Para ele, aquele que se afasta da caridade, mesmo em estado de oração, afasta-se dos ensinamentos de Cristo e, por consequência, afasta-se de Deus. Nas palavras de Pascal (1984), a forma de homem alcançar a paz e a felicidade é acreditar na divindade. Sem Deus, para ele, o homem é mau. Percebe-se, nessa concepção, uma ligação bastante forte com as ideias de Agostinho, para quem o bem só existe em Deus, o que não é bom não é de Deus, mas do homem. Da mesma forma, Pascal acredita que o homem sem Deus é um ser miserável, limitado, que o conhecimento das coisas naturais leva para o entendimento da grandeza de Deus, que é único que capaz de conhecer todas as coisas.
Que o homem, voltado para si próprio, considere o que é diante do que existe; que se encare como um ser extraviado neste canto afastado da natureza, e que, da pequena cela onde se acha preso, isto é, do universo, aprenda a avaliar em seu valor exato a terra, os reinos, as cidades e ele próprio. Que é um homem dentro do infinito? (*72: 51, 1984). 
Ao descrever o homem, Pascal afirma que ele é “naturalmente crédulo, incrédulo, tímido e temerário”, descreve o homem como dependente, desejoso da independência e um ser necessitado, por isso altivo. Nisso pode se reconhecer o quanto pulsa em Pascal a contradição, na mesma medida em que ele acredita na capacidade humana de produzir ciência, tal habilidade está submetida à uma finitude que move o homem para a busca de um Deus infinito. Para provar a infinitude de Deus e a finitude humana, paradoxo barroco vivido por muitos poetas e por muitos filósofos, Pascal afirma que Deus é inatingível e incompreensível pela razão justamente porque é infinito e sendo o homem finito tanto na sua existência, quanto na sua essência, não pode nunca alcançar o que é de Deus. Deus e a verdade são inatingíveis porque são infinitos e a razão humana, sento finita, não tem condições de alcançar aquilo que é maior que ela. Numa relação matematicamente lógica, Pascal desenvolve o mesmo raciocínio a partir do qual demonstra que a relação assimétrica entre o conhecimento do particular e do geral.
Quando queremos mostrar uma coisa geral, cumpre darmos a regra particular de um caso; mas, se queremos mostrar um caso particular, teremos de começar pela regra geral. Achamos sempre obscura a coisa que queremos provar e clara a que empregamos na prova; pois, quando nos propomos a provar alguma, antes de tudo nos obcecamos com a ideia de que ela é obscura mesmo, e, ao contrário, de que a outra, que deve prová-la é clara e, portanto, facilmente compreensível (45/46: 40, 2002).
 A sua obra é recheada de antíteses, algumas simples, como “os apóstolos foram enganados ou enganadores” (*802: 247, 1984), mas que não deixam de revelar o perfil contraditório de Pascal, que questiona a fé e a vida dos profetas na posição de homens de Deus. Ele, não tendo como negar ou afirmar a condição dos profetas prefere acreditar que eles tenham sido realmente pessoas virtuosas e verdadeiras, assim como prefere acreditar que para ser cristão precisa acreditar nos milagres, mesmo questionando que, em relação a milagres, “há os falsos e os verdadeiros” (*803: 248). Nessa afirmativa de Pascal, a sua contradição revela-se mais aparente, uma vez que, sendo um milagre, cuja crença acontece pela fé e não pela razão, ele não deixa de racionalizar acerca da possibilidade de existirem milagres falsos.
Nas palavras do pensador, ele desconfia “de todas as certezas dos sábios”. Afirma que Deus, enquanto verdade a ser conhecida, está fora do alcance do homem devido à mediocridade humana. A produção da ciência por meio de experimentos não diminui a mediocridade humana diante dos olhos de Deus. A ciência tem dois extremos que se tocam: a ignorância, pura e natural; e o conhecimento que, à medida que é construído, leva o homem a entender que nada sabe e não pode saber, a se reconhecer ignorante. Entre esses dois polos, há aqueles que, envernizados de sabedoria, se julgam sábios, julgam mal e nada sabem. Nas palavras do pensador “é muito mais belo saber alguma coisa de tudo do que saber tudo de alguma coisa; essa universalidade é a mais bela (45: 37, 2002). Tal afirmação reforça o caráter contraditório e religioso do filósofo, uma vez que ele enxerga a beleza na universalidade que está em Deus, que se dá a conhecer na particularidade e nunca na universalidade.
Esse jogo contraditório que se estabelece entre a razão e a fé, entre a compreensão de Deus e o seu conhecimento, entre o conhecimento geral e particular também pode ser percebida na sua compreensão acerca da linguagem, cujo “sentido muda segundo as palavras que o exprimem. Os sentidos recebem sua dignidade das palavras em vez de dar-lhes essa dignidade” (47:50, 1984). O paradoxo se estabelece na forma como ele compreende os sentidos que são mutáveis a partir das palavras que os exprimem e que passam a ter dignidade pelo uso das palavras. Nesse raciocínio também é perceptível o jogo com a lógica matemática aplicada ao universo da linguagem, uma vez que, quase sempre, pensa-se que o sentido é que dá dignidade às palavras. Pascal vem demonstrar justamente o contrário, é o sentido que recebe das palavras a dignidade. O sentido é particular e se estabelece a partir de um universo maior de palavras, as quais alterando-se, alteram-se também os sentidos. Nisso evidencia-se uma subserviência dos sentidos ao universo da palavra.
  A partir dessa reflexão, constata-se, no discurso de Pascal, o conflito barroco típico dos homens do século XVII: a tentativa de compreender o mundo e a verdade, a compreensão da infinitude do universo e de Deus e a finitude do homem e de suas formas de conhecer, a relação assimétrica (ou simétrica) entre o sentido e a palavra. Pascal acaba por nos mostrar que não se pode nunca alcançar o conhecimento em sua totalidade, mesmo avançando tanto em ciência e tecnologia, mesmo avançando no conhecimento do universo, o homem é uma fagulha incomensurável – um paradoxo pascalino – nesse universo astronomicamente diverso e difuso.

BIBLIOGRAFIA
ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Tradução de Antonio Angonese. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001.
PASCAL, Bleize. Pensamentos. Versão EbooksBrasil.com, 2002. 

____. Pensamentos. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 

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