Por Rosa Amélia
Ao analisar a história da
humanidade, percebe-se a necessidade que o homem sempre teve de produzir
conhecimento, seja para produzir ciência e tecnologia, seja para conhecer a si
próprio. Para Pascal, com quem pretendemos dialogar nesta reflexão, há uma justificativa
para a busca incansável pelo conhecimento realizada pelo homem, que é o fato de
ele ter uma patologia: “a doença principal do homem é a curiosidade inquieta
das coisas que não pode saber; e não é pior para ele permanecer no erro do que
nessa curiosidade inútil” (41-2: 18, 2002). Partindo dessa ideia de Pascal,
destaca-se que ele, tendo vivido no século XVII, sofreu, paradoxalmente, as
consequências dessa doença chamada curiosidade.
Dessa forma, é necessário compreender o cenário
político, cultural e filosófico que antecedeu a Era Moderna da história da
humanidade, em que viveu Blaise Pascal. Esse momento da história da humanidade
tempo revela-se bastante conflituoso; contudo, aberto às novas ideias, às
mudanças necessárias para uma nova perspectiva de pensar o mundo por meio da
razão e pela capacidade de realizar abstrações. Os séculos XIV e XV foram
importantes em decorrência dos vários acontecimentos que levaram o homem a
buscar o pensamento racional e a perspectiva antropocêntrica como forma de
explicar o mundo, os conflitos humanos, as questões políticas, o fazer científico
e, sobretudo, o pensar filosófico.
Reconhece-se que os
pensadores desses séculos, Guilherme
de Ockham, Márcílio de
Pádua, Alighieri, Petrarca, Nicolau de Cusa, Montaigne, Morus, Bocaccio, Rotherdan,
entre outros, foram grandes empreendedores, porque a empreitada filosófica,
cultural, social e política era contra um sistema robusto que fora construído
ao longo de séculos e sustentado por grandes filósofos patrísticos e
escolásticos, tais como Agostinho e Aquino, respectivamente, os quais, a partir das ideias platônicas e aristotélicas,
fundamentaram muito consistentemente as ideias teocêntricas. Nas palavras
de Rossi (2001), parece ter sido a
Idade Média um período de poucas revoluções intelectuais, apesar de ter sido a
época em que se deu a criação às grandes universidades, lugar de saberes
privilegiados e que deram aos intelectuais a dignidade da remuneração.
O Medievo, claro, tem a
sua importância cultural, sobretudo do ponto de vista filosófico e religioso.
Vale lembrar que as lutas e as guerras, nesse contexto, foram empreendedoras no
sentido de alargar o domínio de terras e, com isso, o poder econômico e
político dos reinos vencedores. A sociedade era bastante estratificada:
nobreza, clero e servos compunham as classes. A nobreza era composta pelos
senhores feudais, ligados fortemente ao poder clerical, os quais determinavam
juntos os dogmas religiosos e os compromissos sociais da classe subordinada,
praticamente toda analfabeta. A arte era comprometida com os temas religiosos,
assim como a filosofia. Dante teve grande destaca na elaboração da imagem do
purgatório, do inferno, tão bem construídos pelo catolicismo. Nessa época, citando White (apud Rossi, 2001:
15), vale lembrar que foram construídas inumeráveis e admiráveis igrejas e
catedrais, bem como conventos e moinhos movidos a ventos e foram lavrados o
campo a arado pesado e foi inventado o estribo que mudou a natureza dos combates.
A economia girava em torno da produção agrícola, era uma sociedade fortemente
agrária. O poder político e econômico estava, fortemente, ligado ao poder do
clero, a forma de governo era absolutista.
Diante desse cenário e
dos conflitos originados em função da luta pelo domínio de terras entre árabes
e os romanos/europeus, os humanistas propuseram a questionar esse sistema e se
colocaram numa perspectiva mais humanista diante das questões sociais. Destaca-se
também a necessidade de eles se posicionarem diante também dos mistérios que
justificavam, muitas vezes, as ações do grupo de pensadores do Medievo: a fé
incondicional em um Deus que determina todos os acontecimentos no mundo,
inclusive os abusos de poder por parte do próprio clero.
A evolução do pensamento
humano alcança um patamar, antes, nunca visto. Os pensadores, inspirados pelo
espírito grego, racionalista e pagão, desenvolvem o que foi denominado como
ideário renascentista. O Renascimento, enquanto movimento cultural, político e
filosófico, teve início no século XIV, com o apogeu no século XV e expandiu-se
até o século XVII, ou seja, começa nos anos trezentos e segue até os anos
seiscentos. A cultura renascentista, na verdade, inicia-se com a decadência do
sistema feudal e absolutista e com a valorização do mercantilismo, que marca o
início do capitalismo e estabelece o comércio em função das conquistas
ultramarinas, as quais fortalece o sistema financeiro.
Na verdade, a cultura
renascentista sustentou-se em quatro pilares: o primeiro pilar é a razão como
fonte de todo o conhecimento, a razão como capacidade de pensar abstratamente; segundo
pilar é o empirismo como forma de provar as ideias e os fatos fora do domínio
da evidências, explorando a razão, o pensamento abstrato e também como forma de
caracterizar a experiência como determinante para a comprovação dos fatos, para
retirá-los do campo da fé; o terceiro pilar é o ideal antropocêntrico, que
compreende o homem como o centro do desenvolvimento do conhecimento científico,
distanciando-se da prática teocêntrica, a partir da qual se desenvolvia um
conhecimento baseado na fé; e o quarto pilar é o individualismo, que passou a
destacar o homem como centro de toda a produção intelectual, artística e
filosófica.
Observa-se, assim, que
ocorre um salto grandioso nas formas de pensar o mundo e de agir diante dele
tanto nas artes, na ciência, na filosofia. O modus operandis humano já não é de subserviência e de subalternidade
às ideias teocêntricas. O homem passa a se enxergar como a perfeita criação do
Criador, sendo capaz de atuar no mundo para o próprio progresso, sobretudo no
campo da ciência, a partir da qual começa-se a descontruir os dogmas e medos seculares
constituídos a partir do espírito religioso e dogmático no sentido de conduzir
e dominar as civilizações.
Destacam-se, nesse
movimento, algumas personalidades, no mundo das artes, Shakespeare, Cervantes,
Gregório de Matos, Gângora, Quevedo, e no mundo da ciência e da filosofia,
Copérnico, Galilei, Kepler, Tycho, Pascal, Descartes. Essas personalidades
acabaram por influenciarem umas às outras, numa relação de entusiasmo, às vezes,
e de medo e autoridade, outras. Uns mais presos às ideias teocêntricas, outros
mais contundentes na sua crítica ao dogmatismo religioso.
No século XVII, em função
da insatisfação dos intelectuais com a perspectiva racionalista que não
conseguia explicar os principais conflitos humanos, eclode, sobretudo nas artes,
o estilo barroco. Nessa arte, o homem expõe o seu conflito entre a valorização
do profano e do sagrado, entre a adoção da fé ou da razão para explicar o mundo
e a si mesmo, entre a crença no homem em suas finitas possibilidades ou a
crença em Deus e no seu supremo poder. Observa-se, tanto na arquitetura quanto
na literatura, o jogo entre esses dois universos: o mundano e o celestial. O
homem constrói inúmeras e imensas igrejas no sentido espalhar e revelar o poder
de Deus. Nesse processo de produção arquitetônica, é necessário pensar
matematicamente, logo o homem sente-se grandioso diante de si mesmo e tem a
necessidade de, cada vez mais, por si só, realizar experiências matemáticas,
científicas e crescer. O conflito está posto.
Nas
raízes da grande revolução científica do século XVII, se situa aquela
compenetração entre técnica e ciência que marcou (para o bem ou para o mal) a
inteira civilização do Ocidente e que, nas formas que assumiu nos séculos XVII
e XVIII (...) não existia tanto na civilização antiga como também naquela da
Idade Média. (verificar a citação, Rossi, ver página).
Reconhece-se que a
produção artística não está desvinculada da produção e de um ideário
filosófico. Assim, ao se pensar na arte produzida no século XVII, compreende-se
que ela é fruto das reflexões e do pensamento filosófico da época. Logo, o que
se pode concluir é que se, na arte, o homem se revelava contraditório, na
produção da filosofia não pode ser diferente. É o que tentaremos mostrar agora,
considerando que alguns pensadores da filosofia, com certeza, influenciaram a
produção artística da época, nesse modo paradoxal de ser e de pensar o mundo, a
fé, Deus, o universo.
No referido século, como
pensador, matemático, filósofo, destaca-se a figura de Blaise Pascal. Ao que se
percebe, pelos seus estudos e escritos, foi um homem que se dividiu entre os
clamores da fé e o pensamento racional. Essa dualidade pode ser decorrente de
dois fatores: o científico/intelectual, cuja influência ele recebeu pela via
teocêntrica e pela via antropocêntrica; e o conflito humano, individual,
natural para pessoas que não se contentam com respostas superficiais para
questões mais profundas.
Em sua biografia, consta
que ele foi uma criança de inteligência extraordinária, além de questionador,
apresentava réplicas inusitadas para questões sem respostas até aquela época.
Cresceu uma pessoa curiosa, apesar de julgar a curiosidade como uma doença e
uma atitude inútil, uma vez que não há conhecimento que não se consegue
alcançar. Demonstrava-se insatisfeito com as superficialidades que eram dadas como
justificativas para algumas questões relacionadas à filosofia, à fé e à
ciência. Curiosidade e insatisfação parecem compor, logo de início, as suas
ideias contraditórias. Já aos dezesseis anos, tinha escrito o Tratado sobre as Cônicas. Ele,
observando-se como homem produtor de ciências, como grande matemático que foi,
dividido entre as concepções idealistas e racionalistas do mundo, entendeu que
há questões na vida humana que não podem ser explicadas pela razão. Isso
explica bastante o seu caráter contraditório. Como estudioso da matemática,
concebeu a primeira máquina de calcular da história da humanidade, provando que
os conceitos abstratos que permeiam a mente humana podem se concretizar em matéria,
em experiência e em máquinas.
Considerando o espírito
contraditório do autor, é possível reconhecer nos Pensamentos de Pascal, a dualidade característica do estilo barroco,
que explora a ambiguidade, os paradoxos, o conflito entre a razão e a fé.
Parte-se do princípio que arte e filosofia são indissociáveis, sobretudo para
os pensadores do passado que, muitas vezes, reuniam no seu fazer a habilidade
artística e a filosófica.
Considerando que a linguagem artística, em que
a conotação por meio das figuras de linguagem constitui o cerne e considerando
que o discurso filosófico se concretiza a partir da linguagem, é possível
reconhecer em alguns filósofos a arte de escrever literariamente ou, ainda, é
possível reconhecer toda a influência da filosofia na arte. Dessa forma, ao ler
Pascal, o que mais se destaca em seu discurso filosófico é o jogo com a
linguagem figurada, a representação do contraditório que se dá a partir do uso
da antítese e do paradoxo, figuras de linguagens predominantes no estilo
barroco presente no homem do século XVII.
O forte espírito
religioso de Blaise revela-se em vários momentos de sua obra, mesmo ele sendo
um homem da matemática e da ciência, contradição bastante aparente, no seu
discurso, observa-se uma fé inabalável nos preceitos da fé cristã. Para
justificá-la, ele afirma que o fato de Jesus ter sido profetizado, ter vindo e
vivido a profecia, o fato de muitos outros homens o adorarem até aquele tempo
levam-no a crer cada vez mais na verdade dos livros sagrados, os quais perduram
por muitos séculos; ele ainda afirma que “quanto mais ele os examina, mais
descobre verdades” (*737: 235, 1984).
Entre essas verdades, ele
aponta o fato de Deus querer do homem o exercício da humildade, da
solidariedade e da caridade vivida por Jesus. Para ele, aquele que se afasta da
caridade, mesmo em estado de oração, afasta-se dos ensinamentos de Cristo e,
por consequência, afasta-se de Deus. Nas palavras de Pascal (1984), a forma de
homem alcançar a paz e a felicidade é acreditar na divindade. Sem Deus, para
ele, o homem é mau. Percebe-se, nessa concepção, uma ligação bastante forte com
as ideias de Agostinho, para quem o bem só existe em Deus, o que não é bom não
é de Deus, mas do homem. Da mesma forma, Pascal acredita que o homem sem Deus é
um ser miserável, limitado, que o conhecimento das coisas naturais leva para o
entendimento da grandeza de Deus, que é único que capaz de conhecer todas as
coisas.
Que o homem, voltado para
si próprio, considere o que é diante do que existe; que se encare como um ser
extraviado neste canto afastado da natureza, e que, da pequena cela onde se
acha preso, isto é, do universo, aprenda a avaliar em seu valor exato a terra,
os reinos, as cidades e ele próprio. Que é um homem dentro do infinito? (*72:
51, 1984).
Ao descrever o homem,
Pascal afirma que ele é “naturalmente crédulo, incrédulo, tímido e temerário”,
descreve o homem como dependente, desejoso da independência e um ser
necessitado, por isso altivo. Nisso pode se reconhecer o quanto pulsa em Pascal
a contradição, na mesma medida em que ele acredita na capacidade humana de
produzir ciência, tal habilidade está submetida à uma finitude que move o homem
para a busca de um Deus infinito. Para provar a infinitude de Deus e a finitude
humana, paradoxo barroco vivido por muitos poetas e por muitos filósofos,
Pascal afirma que Deus é inatingível e incompreensível pela razão justamente
porque é infinito e sendo o homem finito tanto na sua existência, quanto na sua
essência, não pode nunca alcançar o que é de Deus. Deus
e a verdade são inatingíveis porque são infinitos e a razão humana, sento
finita, não tem condições de alcançar aquilo que é maior que ela. Numa relação matematicamente lógica, Pascal
desenvolve o mesmo raciocínio a partir do qual demonstra que a relação
assimétrica entre o conhecimento do particular e do geral.
Quando queremos mostrar uma coisa geral, cumpre darmos a regra particular
de um caso; mas, se queremos mostrar um caso particular, teremos de começar
pela regra geral. Achamos sempre obscura a coisa que queremos provar e clara a
que empregamos na prova; pois, quando nos propomos a provar alguma, antes de
tudo nos obcecamos com a ideia de que ela é obscura mesmo, e, ao contrário, de
que a outra, que deve prová-la é clara e, portanto, facilmente compreensível
(45/46: 40, 2002).
A sua obra é recheada de
antíteses, algumas simples, como “os apóstolos foram enganados ou enganadores”
(*802: 247, 1984), mas que não deixam de revelar o perfil contraditório de
Pascal, que questiona a fé e a vida dos profetas na posição de homens de Deus.
Ele, não tendo como negar ou afirmar a condição dos profetas prefere acreditar
que eles tenham sido realmente pessoas virtuosas e verdadeiras, assim como
prefere acreditar que para ser cristão precisa acreditar nos milagres, mesmo questionando
que, em relação a milagres, “há os falsos e os verdadeiros” (*803: 248). Nessa
afirmativa de Pascal, a sua contradição revela-se mais aparente, uma vez que,
sendo um milagre, cuja crença acontece pela fé e não pela razão, ele não deixa
de racionalizar acerca da possibilidade de existirem milagres falsos.
Nas palavras do pensador, ele
desconfia “de todas as certezas dos sábios”. Afirma que Deus, enquanto verdade
a ser conhecida, está fora do alcance do homem devido à mediocridade humana. A
produção da ciência por meio de experimentos não diminui a mediocridade humana
diante dos olhos de Deus. A ciência tem dois extremos que se tocam: a
ignorância, pura e natural; e o conhecimento que, à medida que é construído,
leva o homem a entender que nada sabe e não pode saber, a se reconhecer
ignorante. Entre esses dois polos, há aqueles que, envernizados de sabedoria,
se julgam sábios, julgam mal e nada sabem. Nas palavras do pensador “é muito mais belo saber
alguma coisa de tudo do que saber tudo de alguma coisa; essa universalidade é a
mais bela (45: 37, 2002). Tal afirmação reforça o caráter contraditório e
religioso do filósofo, uma vez que ele enxerga a beleza na universalidade que
está em Deus, que se dá a conhecer na particularidade e nunca na
universalidade.
Esse jogo contraditório que se estabelece entre a razão e a fé, entre a
compreensão de Deus e o seu conhecimento, entre o conhecimento geral e
particular também pode ser percebida na sua compreensão acerca da linguagem,
cujo “sentido muda segundo as palavras que o exprimem. Os sentidos recebem sua
dignidade das palavras em vez de dar-lhes essa dignidade” (47:50, 1984). O paradoxo
se estabelece na forma como ele compreende os sentidos que são mutáveis a
partir das palavras que os exprimem e que passam a ter dignidade pelo uso das
palavras. Nesse raciocínio também é perceptível o jogo com a lógica matemática
aplicada ao universo da linguagem, uma vez que, quase sempre, pensa-se que o
sentido é que dá dignidade às palavras. Pascal vem demonstrar justamente o
contrário, é o sentido que recebe das palavras a dignidade. O sentido é
particular e se estabelece a partir de um universo maior de palavras, as quais
alterando-se, alteram-se também os sentidos. Nisso evidencia-se uma
subserviência dos sentidos ao universo da palavra.
A partir dessa reflexão, constata-se, no
discurso de Pascal, o conflito barroco típico dos homens do século XVII: a
tentativa de compreender o mundo e a verdade, a compreensão da infinitude do
universo e de Deus e a finitude do homem e de suas formas de conhecer, a
relação assimétrica (ou simétrica) entre o sentido e a palavra. Pascal acaba por nos
mostrar que não se pode nunca alcançar o conhecimento em sua totalidade, mesmo
avançando tanto em ciência e tecnologia, mesmo avançando no conhecimento do
universo, o homem é uma fagulha incomensurável – um paradoxo pascalino – nesse
universo astronomicamente diverso e difuso.
BIBLIOGRAFIA
ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa.
Tradução de Antonio Angonese. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001.
PASCAL, Bleize. Pensamentos. Versão EbooksBrasil.com,
2002.
____. Pensamentos. São Paulo: Abril Cultural,
1984.
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