quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Últimos - Fernando Marques

Rosamélia
O LIVRO-DISCO "ÚLTIMOS" É UMA Peça de teatro muito interessante, remonta à produção de séculos passados pela sua estrutura em versos concisos e capricho excessivo na sua elaboração. Para a nossa sociedade, textos dessa natureza são importantes porque revelam, de forma apelativa, poética e bem humorada, os problemas sociais que se acirram cada vez mais no Brasil, por exemplo, os conflitos decorrentes da desigualdade social que invade nossas ruas, nossas casas, nossas cidades, nosso país, nossas vidas. Problemas que deixam muitos de nós sem teto, sem terra, sem escola, sem trabalho, sem comida, sem tudo, muitas vezes, sem vida. O texto sintetiza o sofrimento de muitos brasileiros que podemos designar de "sem nada ou seria sem tudo?"
EXCELENTE obra para reflexão; contudo, não é para qualquer leitor, porque a sua composição nos lembra o racionalismo de João Cabral de Melo Neto. As metáforas? Então!? De grande erudição. Apesar de o texto tratar de uma trama comum aos brasileiros sem privilégios, ler "Últimos" não é tarefa simples porque o conteúdo expresso pela linguagem é extremamente simbólico e, sobretudo, culto, apesar de em alguns momentos se observar a presença de coloquialismos regionais. Sabemos que a maioria dos brasileiros não é erudita, muitos de nós têm, inclusive, sabedoria advinda da experiência de vida, adquirida a partir das dores que essa vida dura e desigual promove; mas, não o suficiente para enxergar-se como protagonistas da linguagem de uma obra como "Últimos" que explora a poética com tanta precisão. E os jogos intertextuais que ocorrem no texto? Esses são riquíssimos, apresentam o largo diálogo com as diversas esferas da cultura, revelando o alto conhecimento do autor na área das letras e do teatro.
DIGAMOS que Últimos não é, ainda, para ser lido pelos sem poética, ou seja, por aqueles que não tem a cultura da poesia, poesia aqui em sentido estrito, apesar de eles serem o fulcro da obra. Excelente composição. Imagino que a representação do texto deve ser mais fácil de se entender. O texto começa em versos, ora alternados, ora emparelhados, ora interpoladas (não necessariamente nessa ordem), tem métrica regular, explorando rimas ricas e primoroso vocabulário, apresenta ricamente o recurso do enjambement, termina de modo prosaico, não menos poético, é claro. Talvez essa variação na estrutura tenha sido um recurso, uma técnica de aproximação do texto à vida de seus reais protagonistas: os sem nada, ou melhor, os sem tudo.
FERNANDO Marques, autor do texto, revela-se engajado tanto em questões sociais e políticas quanto em questões acadêmicas, uma vez que une o eruditismo da linguagem expressa por uma poética rigorosa à problematização de questões sociais urgentes na nossa sociedade. Inclusive mostra, implicitamente, que o fazer poético pode ser levado e revelado às classes populares para que elas tenham consciência de que suas histórias, porque marginais, podem ser inspiração para uma grande obra poética, fugindo assim dos modelos das tragédias clássicas, as quais sempre têm como heróis personagens de ações elevadas e nobres. A referida obra ganha destaque, sobretudo, por que os heróis são pessoas simples, das classes populares: são prostitutas, ambulantes, eletricistas, carpinteiros etc. Pode-se chamá-los de heróis, uma vez que eles sobrevivem a conflitos sociais graves gerados pela fome e pela guerra por moradia. O heroísmo dos menos favorecidos é o grande personagem dessa peça teatral. Fica aí a sugestão, bom proveito. Leitura breve, mas difícil.
SÓ UM ADENDO: O livro é acompanhado de um disco, algo inovador: livro + disco. As músicas fazem parte do texto que compõe o drama dos personagens, inclusive são cantadas por eles. Algumas são mais leves, outras líricas e outras dramáticas, compondo aí o repertório da nossa música popular brasileira.

Digite aqui o resto do post

4 comentários:

Fernando Marques disse...

Rosa,

Obrigado pela leitura crítica do livro-disco "Últimos - comédia musical em dois atos". É curioso: escrevi o texto procurando deixá-lo o mais legível, o mais claro e leve possível. No entanto, passei, a seu ver, a impressão de "capricho excessivo" e de "leitura árdua". Paciência! Mas me permita discordar quando fala no "racionalismo exagerado" de João Cabral. Creio que se refira a "Morte e vida severina" – que, para o próprio Cabral, seria uma de suas obras mais fáceis, mais diretas e, por isso mesmo, uma das menos apreciadas pelo próprio autor... Ele não tinha razão em depreciar a relativa simplicidade do texto, virtude que, parece, tem garantido as várias reedições do poema-peça, escrito em 1955.

Senti falta, ainda, de referência às canções, que fazem parte de "Últimos" e que o "molham" um pouco, tornando-o mais palatável – se é que os versos, por si sós, já não são palatáveis... Lembro que palavras como "babau", "bafafá", "ziriguidum", usadas na peça, deveriam ao menos idealmente ligá-la à linguagem coloquial, ao falar familiar mesmo, e não apenas às esferas cultas a que você relaciona o livro.

Perdi de goleada para o Nelson! 10x0.

Com a expressão final, "leitura breve, mas difícil", acho que a crítica como que nega a sugestão de "bom proveito" feita logo antes.

Será que a excessiva, desmesurada insistência deste autor, de fato seu amigo, toldou um pouco do prazer que a peça pretende propiciar? Pode ser, pode não ser. E deixo a pergunta: o que achou das canções? Reitero: elas integram a peça. Desta vez, sem insistência, tá?

Li o comentário acerca de meu livro e o seguinte, dedicado ao Nelson Rodrigues romancista. Noto que em você parece brotar – expressão adequada às Rosas! – uma vocação de comentarista de literatura, algo louvável, gostoso de ver florir.

De novo: grato por sua apreciação, que me pareceu demasiado severa, mas minuciosa e honesta.

Um beijo,

Fernando.

Rosa Amarela disse...

Olá Fernando, o capricho excessivo não atrapalha a leitura. O texto é difícil porque os jogos intertextuais e as metáforas exigem do leitor um alto conhecimento, que, na minha percepção, o não-leitor não têm. Entende?
Desculpe-me se fui severa, não era essa a minha intenção.
Quanto às músicas não quis comentar mesmo, porque se não acabo entregando o texto de bandeja para o leitor. Mas se você questão, posso fazer um adendo no texto para dizer o tanto que o repertório musical é rico e o quanto algumas são líricas e outras dramáticas. O que eu pretendo fazer é, com os meus comentários, instigar o leitor a ler os textos aqui analisados. Talvez não tenha sido claravou rever o meu texto. Há sempre como acrescentar.Desculpe-me mais uma vez se fui severa. Mas reforço, existe um preciosismo na construção do texto e isso é perceptível, inclusive, no seu comentário, quando fala do zelo. Beijo e inté!!!

Rosa Amarela disse...

Ah, só acrescentando, sempre fui leitora. Eu não achei o texto difícil. Imagino que seja para o leitor comum - pessoas que não tem o hábito da leitura. Ler só de vez em quando. Entende?
Beijo de novo...

Unknown disse...

Oi Rosa, achei interessante você ter feito comentários sobre o livro Últimos, não pelo conteudo do comentário, mas pelo fato de ter feito. Tanto o Livro como o Autor merecem esta sua atenção. Beijos.