Por Rosa Amélia
O cenário político,
cultural e filosófico que antecedeu a Era Moderna da história da humanidade
revela-se bastante conflituoso; contudo, aberto às novas ideias, às mudanças
necessárias para uma nova perspectiva de pensar o mundo por meio da razão e
pela capacidade de realizar abstrações. Os séculos XIV e XV foram importantes
em decorrência dos vários acontecimentos que levaram o homem a valorizar o
pensamento racional e a perspectiva antropocêntrica como forma de explicar o
mundo, os conflitos humanos, as questões políticas, o fazer científico e,
sobretudo, a filosofia. Entre tantos conflitos, o fazer filosófico, numa
perspectiva naturalista, vai se constituindo entre os meandros da fé e da
racionalidade, criando novos paradigmas, que podem ser entendidos como modelos,
nas palavras de Hacking (2012), os quais representam os
dados específicos de uma realidade do mundo ou o modo de realizar as atividades
nesse mundo. Isso fica evidente ao se analisar o comportamento dos cientistas
que promoveram os avanços relativos à física, à matemática, à alquimia.
Reconhece-se que os pensadores
desses séculos foram grandes empreendedores, porque a empreitada filosófica,
cultural, social e política era contra um sistema robusto que fora construído
ao longo de séculos e sustentado por paradigmas filósofos - patrísticos e
escolásticos –, os quais, a partir das ideias platônicas e aristotélicas,
fundamentaram muito consistentemente as ideias teocêntricas. Nas palavras
de Rossi (2001), parece ter sido a
Idade Média um período de poucas revoluções intelectuais, apesar de ter sido a
época em que se deu a criação às grandes universidades, lugar de saberes
privilegiados e que deram aos intelectuais a dignidade da remuneração. Vale lembrar
que a ideia de Hacking (2012), para quem a ideia de
revolução caracteriza pela perpetuação do próprio fazer revolucionário dentro
da ciência. A ciência é em si a sua própria fonte de revolução.
O Medievo, claro, tem a
sua importância cultural, sobretudo do ponto de vista filosófico e religioso.
Vale lembrar que as lutas e as guerras, nesse contexto, foram empreendedoras no
sentido de alargar o domínio de terras e, com isso, o poder econômico e
político dos reinos vencedores. A sociedade era bastante estratificada:
nobreza, clero e servos compunham as classes. A nobreza era composta pelos
senhores feudais, ligados fortemente ao poder clerical, os quais determinavam
juntos os dogmas religiosos e os compromissos sociais da classe subordinada,
praticamente toda analfabeta. A arte era comprometida com os temas religiosos,
assim como a filosofia. Nessa época, citando White (apud Rossi, 2001: 15), vale
lembrar que foram construídas inumeráveis e admiráveis igrejas e catedrais, bem
como conventos e moinhos movidos a ventos e foram lavrados o campo a arado
pesado e foi inventado o estribo que mudou a natureza dos combates. A economia
girava em torno da produção agrícola, era uma sociedade fortemente agrária. O
poder político e econômico estava, fortemente, ligado ao poder do clero, a
forma de governo era absolutista.
Diante desse cenário e
dos conflitos originados em função da luta pelo domínio de terras entre árabes
e os romanos/europeus, alguns pensadores se propuseram a questionar esse
sistema e se colocaram numa perspectiva mais humanista diante das questões
sociais. Destaca-se também a necessidade de eles se posicionarem diante também
dos mistérios que justificavam, muitas vezes, as ações do grupo de pensadores
do Medievo: a fé incondicional em um Deus que determina todos os acontecimentos
no mundo, inclusive os abusos de poder por parte do próprio clero. Observa-se,
assim, nesta sucinta descrição que tanto o fazer científico, filosófico quanto
o fazer político, dos referidos séculos, implodiram a si mesmos a partir de
questionamentos daqueles que viviam os regimes vigentes.
Naquele momento, a
evolução do pensamento humano alcança um patamar, antes, nunca visto. Os
pensadores, inspirados pelo espírito grego, racionalista e pagão, desenvolvem o
que foi denominado como ideário renascentista. O Renascimento, enquanto
movimento cultural, político e filosófico, teve início no século XIV, com o
apogeu no século XV e expandiu-se até o século XVII, ou seja, começa nos anos
trezentos e segue até os anos seiscentos. A cultura renascentista, na verdade,
inicia-se com a decadência do sistema feudal e absolutista e com a valorização
do mercantilismo, que marca o início do capitalismo e estabelece o comércio em
função das conquistas ultramarinas, as quais fortalece o sistema
financeiro.
Na verdade, a cultura
renascentista sustentou-se em quatro pilares: o primeiro pilar é a razão como
fonte de todo o conhecimento, a razão como capacidade de pensar abstratamente;
segundo pilar é o empirismo como forma de provar as ideias e os fatos fora do
domínio da evidências, explorando a razão, o pensamento abstrato e também como
forma de caracterizar a experiência como determinante para a comprovação dos
fatos, para retirá-los do campo da fé; o terceiro pilar é o ideal
antropocêntrico, que compreende o homem como o centro do desenvolvimento do
conhecimento científico, distanciando-se da prática teocêntrica, a partir da
qual se desenvolvia um conhecimento baseado na fé; e o quarto pilar é o
individualismo, que passou a destacar o homem como centro de toda a produção
intelectual, artística e filosófica.
Observa-se, ao longo
desse tempo, que ocorre um salto grandioso nas formas de pensar o mundo e de
agir diante dele tanto nas artes, na ciência, na filosofia. O modus operandis humano já não é de
subserviência e de subalternidade às ideias teocêntricas. O homem passa a se
enxergar como a perfeita criação do Criador, capaz de atuar no mundo para o
próprio progresso, sobretudo no campo da ciência, a partir da qual começa-se a
descontruir todos os dogmas e medos seculares constituídos a partir do espírito
religioso e dogmático no sentido de conduzir e dominar as civilizações.
O Renascimento
reencontrou, sem dúvida, de certo modo, os valores do mundo greco-romano. Mas,
ao mesmo tempo, tomou consciência do intransponivel fosso que o separava desses
valores. Interpondo os espessos tempos obscuros entre a Antiguidade e a nova
Idade de Ouro, relegou definitivamente para o passado como coisa já esgotada,
uma civilização em que desejava inspirar-se, mas que não podia ressuscitar. O
Renascimento, portanto, teve consciência histórica. Essa consciência era uma novidade
e era sinal de uma mentalidade nova (Delumeau, 1994: 119).
Rossi (2001) demonstra
quão qualitativo e cheio de adversidade fora essa passagem para uma nova forma
de fazer ciência e pensar o mundo. Antes o mundo estava ligado intrinsicamente
a uma filosofia teocêntrica ou a uma tentativa de explicar Deus pela filosofia,
era outro paradigma. Ao observar o espaço físico, propriamente dito, a partir
da invenção de alguns instrumentos, como a luneta e o microscópio, por exemplo,
os filósofos/cientistas começam a questionar algumas certezas acerca do mundo
físico e do mundo metafísico. Tais questionamentos, centrados em outros
paradigmas, na verdade, à época, provocaram grandes reboliços nas esferas da
política e do comando das sociedades, uma vez que as ditas certezas mantinham
no poder aqueles que as determinavam. Vale lembrar que todo esse contexto
social de valoração de uma filosofia teocêntrica constituiu, por muito tempo, o
que Bachelard denominou de “obstáculos epistemológicos, uma vez que tais
valores acabaram dificultando de certa forma o avanço da ciência.
Aquelas
convicções que tendem a impedir toda a ruptura
e a descontinuidade no crescimento do saber científico e, por
conseguinte, constituem obstáculos poderosíssimos para a afirmação de novas
verdades” (Bachelard, aput Rossi. 2001: 29).
A tentativa de laicização da
filosofia e da ciência teve, como principal embargo, a cultura teocêntrica. Rossi
afirma que
a ciência
moderna não nasceu no campo da generalização de observações empíricas, mas no
terreno de uma análise capaz de abstrações, isto é, capaz de deixar o nível do
sentido comum, das qualidades sensíveis e da experiência imediata (2001: 34).
Era essa a prática comum ao
realizar a filosofia teocêntrica, uma vez que os raciocínios eram encaminhados
para que se provasse a existência de Deus. Rossi aponta outro fator que
dificultou o nascimento da ciência moderna: o desmerecimento do conhecimento mecânico
em detrimento do conhecimento racional e dito científico. Esse desmerecimento
tem a ver com “estrutura da sociedade e com a organização do trabalho” (2001: 39).
Rossi avança na reflexão no
sentido de demonstrar como o conhecimento mecânico pode ser valorizado. Após
questionar se “é possível que um homem possa chegar ao conhecimento dos efeitos
naturais sem jamais ter lido livros escritos” (2001: 65), o autor apresenta uma
série de exemplos em que homens simples, a partir da sua técnica, realizam descobertas
importantes para o mundo científico.
No Ocidente, durante mais de
mil anos, as figuras dominantes da cultura eram os santos, os monges, o
professor, o militar, o médico, o artesão e o mágico. Depois passaram a
integrar esse grupo os humanistas e os fidalgos. No século XVII inseriram-se
nesse grupo o mecânico, o filósofo naturalista, o artista virtuoso ou livre
empreendedor. Com a inserção desses novos membros, a ideia de conhecimento, o
novo saber científico passa a colidir com o saber dos monges, dos escolásticos,
dos humanistas e dos professores. Há uma forte oposição entre o conhecimento
alquímico e o conhecimento dos mecânicos e dos engenheiros emerge, apesar
desses dois tipos de conhecimento caminharem conjuntamente. O desenvolvimento
das artes mecânicas e da ciência compõe o desenvolvimento ciência comprovando o
que Hacking (2012) afirma em relação ao fato de a ciência não ser puramente
lógica e racional.
Ao que parece há uma guerra
pelo conhecimento. Assim como os monges antes pulverizavam a ideia de que há um
conhecimento oculto não acessível a todos, os engenheiros, ao realizarem suas
invenções, não davam a conhecer os meandros de suas descobertas, não pelas
mesmas razões. Eles protegiam o conhecimento por uma questão econômica, os
outros, ao que parece, protegiam por uma questão de poder. O mistério, para os
místicos, era a justificativa para caracterizar as forças ocultas. Contudo
busca-se desconstruir essa ideia do segredo como algo interessante, busca-se
entender o segredo como um desvalor.
Em relação ao que move a
ciência, observa-se que ela foi movida, nesses tempos, por artistas e práticos,
pois eles realizavam suas produções pelo prazer, pela diversão, estimulados s
projetarem algo novo que trouxesse conforto e diversão, não estavam envolvidos
necessariamente com o progresso da ciência.
Interessante notar que o
avanço das reflexões no campo da filosofia e da ciência se concretizam de tal forma
que começam a desmoronar as crenças e os valores que sustentaram até aquele
momento as ideologias teocêntricas. Muitos foram perseguidos, muitos foram
condenados hereges. Os pensadores, aliando-se às novas tecnologias, buscavam
explicar o mundo de uma forma mais concreta, a partir de observações empíricas
do espaço e da natureza. O que se pode entender, a partir dos estudos, é que o
desenvolvimento do pensamento matemático, da experiência no campo da física e
dos ensaios alquímicos no campo da química fez um mundo teocêntrico ruir. Por
mais que os filósofos tentassem justificar, explicar aspectos metafísicos por
meio de experiências, fatos naturais, esse campo só pode ser desenvolvido no
plano do raciocínio e para aqueles que acreditam no transcendental. Contudo, a
ciência progride a partir do raciocínio matemático, das experiências empíricas e
das observações naturais, as quais parecem não ser exaustivas. Há sempre algo
novo a ser descoberto a partir de uma descoberta.
Observa-se, em Hacking (2012),
uma preocupação em distinguir o processo evolutivo da ciência e o próprio fazer
científico. Para construir essa distinção, ao discorrer sobre o progresso do
conhecimento ele aponta para dois tipos de história: a externa e a interna. A
interna seria aquela que é própria do fazer científico, talvez mais difícil de
acompanhar em detrimento da quantidade de conhecimento que se agrega ao se
constituir a ciência; a externa, destaque nesta reflexão, aponta para
perspectiva histórica do ponto de vista social, político e econômico, compõe-se
dos fatos sucessivamente que contribuíram de maneira interna para a evolução da
ciência. Hacking (2012) ressalta que essas perspectivas estão intrinsicamente
ligadas, uma se sobrepondo à outra, numa relação dialética. Não se produz
conhecimento fora da história e não se produz conhecimento fora da ciência. “O
conhecimento, em si mesmo, constitui uma entidade que evolui historicamente”
(idem, 78).
Considerando o contexto da
revolução científica que começa a partir do século XV, Copérnico talvez tenha
sido o precursor nessa conquista, porque ele, ao apontar as suas constatações,
realizadas a partir de instrumentos mecânicos, revolucionou o estudo no campo
da astronomia, fez ruir o céu que existia e criou uma polêmica em torno de suas
teses. Interpretando outros filósofos, como Ptolomeu, Aristóteles, ele constrói
uma nova teoria, contudo, receoso das controversas, humilde e humanista, ele a
apresenta de forma mais reticente. Seguindo o caminho de Copérnico, Kepler,
Tycho, Galilei, Giordano Bruno, Pascal, Descartes, Isaac Newton contribuíram
significativamente para o desenvolvimento da ciência: alguns mais agressivos,
outros mais reticentes, às vezes negando as teorias dos outros, às vezes,
confirmando, mas sempre com a tenaz ideia de fazer a ciência avançar, mesmo
quando a maioria deles estivera preso, por questões ideológicas, ao
Cristianismo.
O auge desse momento acontece
com as reflexões de Descartes, cujas ideias demarcam o que os estudiosos
denominam de “revolução científica” e relacionam-se com o fazer científico de
forma bastante objetiva. Tal objetividade é descrita no Discurso do Método em
que se observa o passo a passo do pensar científico: a partir do momento em que
se questiona a razão humana para educa-lo no processo de raciocinar sobre a
verdade, buscando a melhor forma de compreender as ideias, deve-se colocar tudo
em cheque, ou seja, deve-se duvidar de tudo.
A dúvida é o princípio de tudo
inclusive da característica racional humana, uma vez que quem duvida duvida
porque pensa, se se duvida, se pensa, se se pensa, existe-se, assim cria-se a
máxima de Descartes: penso logo existo, cujo princípio é a dúvida. No Método
cartesiano, há quatro etapas: questionamento das ideias – aquelas que passarem
pelo crivo do questionamento, serem indubitáveis devem ser divididas,
esquadrinhadas para melhor análise; a partir dessa divisão, deve-se realizar
uma separação dessas ideias considerando as mais simples e as mais complexas,
ou seja, para compreendê-las, é necessário buscar entender a gradação, a
complexidade entre elas. O passo seguinte do Método de Descartes é realizar uma
revisão de todo o processo realizando questionamento para se verificar as
arestas acerca das questões postas inicialmente com o objetivo de garantir a
segurança das respostas obtidas. Esse método tornou-se, na verdade, a base da
Ciência Moderna.
A suposta revolução científica
iniciada no século XV, que avançou no século XVI, acabou culminando, a partir
de um processo de transformações tanto no pensamento, quanto nas formas de
fazer a ciência, com as reflexões de Isaac Newton, o maior pensador do século
XVIII. Nascido no fim do século XVII, Newton se destacou ao estudar a
astronomia, a matemática, a alquimia, a ótica, a física. A partir de
observações realizadas do espaço, por meio de instrumento específicos e por
meio de cálculos matemáticos criados por ele mesmo, este pensador revoluciona a
ciência propondo a teoria gravitacional do universo e outras teorias dentro da
matemática. Muito ligado à ideologia cristã, Newton tenta provar
matematicamente a existência de um Deus. Sem desmerecer todo o trabalho de Newton,
é bom lembrar que ele foi sustentado por um avanço construído por outros
precursores. Isso demonstra a perspectiva interna e externa do fazer científico
estão realmente ligados.
Ao fim desse percurso
histórico, na tentativa de mostrar como a filosofia, mesmo estando presa aos
domínios da fé, foi se desprendendo da perspectiva teocêntrica, destacam-se nomes importantes,
que muitas vezes defenderam o cristianismo, a divindade e a bíblia, contudo
acabaram por promover a laicização do pensamento filosófico e o
desenvolvimento, paulatino, da ciência, ou seja, acabaram por promover uma
mudança de paradigma nas formas de fazer ciência e filosofia, nas formas de
compreender o mundo e o homem.
BIBLIOGRAFIA
DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Tradução
Manuel Ruas. Lisboa: Editora Estampa, 1994.
HACKING, Ian. Representar e intervir: tópicos
introdutórios de filosofia da ciência natural. Tradução Pedro Rocha de
Oliveira. Rio de Janeiro: EdUerj, 2012.
ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa.
Tradução de Antonio Angonese. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001.
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