quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

A filosofia moderna: um percurso histórico

Por Rosa Amélia 
O cenário político, cultural e filosófico que antecedeu a Era Moderna da história da humanidade revela-se bastante conflituoso; contudo, aberto às novas ideias, às mudanças necessárias para uma nova perspectiva de pensar o mundo por meio da razão e pela capacidade de realizar abstrações. Os séculos XIV e XV foram importantes em decorrência dos vários acontecimentos que levaram o homem a valorizar o pensamento racional e a perspectiva antropocêntrica como forma de explicar o mundo, os conflitos humanos, as questões políticas, o fazer científico e, sobretudo, a filosofia. Entre tantos conflitos, o fazer filosófico, numa perspectiva naturalista, vai se constituindo entre os meandros da fé e da racionalidade, criando novos paradigmas, que podem ser entendidos como modelos, nas palavras de Hacking (2012), os quais representam os dados específicos de uma realidade do mundo ou o modo de realizar as atividades nesse mundo. Isso fica evidente ao se analisar o comportamento dos cientistas que promoveram os avanços relativos à física, à matemática, à alquimia.
Reconhece-se que os pensadores desses séculos foram grandes empreendedores, porque a empreitada filosófica, cultural, social e política era contra um sistema robusto que fora construído ao longo de séculos e sustentado por paradigmas filósofos - patrísticos e escolásticos –, os quais, a partir das ideias platônicas e aristotélicas, fundamentaram muito consistentemente as ideias teocêntricas. Nas palavras de   Rossi (2001), parece ter sido a Idade Média um período de poucas revoluções intelectuais, apesar de ter sido a época em que se deu a criação às grandes universidades, lugar de saberes privilegiados e que deram aos intelectuais a dignidade da remuneração. Vale lembrar que a ideia de Hacking (2012), para quem a ideia de revolução caracteriza pela perpetuação do próprio fazer revolucionário dentro da ciência. A ciência é em si a sua própria fonte de revolução.
O Medievo, claro, tem a sua importância cultural, sobretudo do ponto de vista filosófico e religioso. Vale lembrar que as lutas e as guerras, nesse contexto, foram empreendedoras no sentido de alargar o domínio de terras e, com isso, o poder econômico e político dos reinos vencedores. A sociedade era bastante estratificada: nobreza, clero e servos compunham as classes. A nobreza era composta pelos senhores feudais, ligados fortemente ao poder clerical, os quais determinavam juntos os dogmas religiosos e os compromissos sociais da classe subordinada, praticamente toda analfabeta. A arte era comprometida com os temas religiosos, assim como a filosofia. Nessa época, citando White (apud Rossi, 2001: 15), vale lembrar que foram construídas inumeráveis e admiráveis igrejas e catedrais, bem como conventos e moinhos movidos a ventos e foram lavrados o campo a arado pesado e foi inventado o estribo que mudou a natureza dos combates. A economia girava em torno da produção agrícola, era uma sociedade fortemente agrária. O poder político e econômico estava, fortemente, ligado ao poder do clero, a forma de governo era absolutista.
Diante desse cenário e dos conflitos originados em função da luta pelo domínio de terras entre árabes e os romanos/europeus, alguns pensadores se propuseram a questionar esse sistema e se colocaram numa perspectiva mais humanista diante das questões sociais. Destaca-se também a necessidade de eles se posicionarem diante também dos mistérios que justificavam, muitas vezes, as ações do grupo de pensadores do Medievo: a fé incondicional em um Deus que determina todos os acontecimentos no mundo, inclusive os abusos de poder por parte do próprio clero. Observa-se, assim, nesta sucinta descrição que tanto o fazer científico, filosófico quanto o fazer político, dos referidos séculos, implodiram a si mesmos a partir de questionamentos daqueles que viviam os regimes vigentes.
Naquele momento, a evolução do pensamento humano alcança um patamar, antes, nunca visto. Os pensadores, inspirados pelo espírito grego, racionalista e pagão, desenvolvem o que foi denominado como ideário renascentista. O Renascimento, enquanto movimento cultural, político e filosófico, teve início no século XIV, com o apogeu no século XV e expandiu-se até o século XVII, ou seja, começa nos anos trezentos e segue até os anos seiscentos. A cultura renascentista, na verdade, inicia-se com a decadência do sistema feudal e absolutista e com a valorização do mercantilismo, que marca o início do capitalismo e estabelece o comércio em função das conquistas ultramarinas, as quais fortalece o sistema financeiro. 
Na verdade, a cultura renascentista sustentou-se em quatro pilares: o primeiro pilar é a razão como fonte de todo o conhecimento, a razão como capacidade de pensar abstratamente; segundo pilar é o empirismo como forma de provar as ideias e os fatos fora do domínio da evidências, explorando a razão, o pensamento abstrato e também como forma de caracterizar a experiência como determinante para a comprovação dos fatos, para retirá-los do campo da fé; o terceiro pilar é o ideal antropocêntrico, que compreende o homem como o centro do desenvolvimento do conhecimento científico, distanciando-se da prática teocêntrica, a partir da qual se desenvolvia um conhecimento baseado na fé; e o quarto pilar é o individualismo, que passou a destacar o homem como centro de toda a produção intelectual, artística e filosófica.
Observa-se, ao longo desse tempo, que ocorre um salto grandioso nas formas de pensar o mundo e de agir diante dele tanto nas artes, na ciência, na filosofia. O modus operandis humano já não é de subserviência e de subalternidade às ideias teocêntricas. O homem passa a se enxergar como a perfeita criação do Criador, capaz de atuar no mundo para o próprio progresso, sobretudo no campo da ciência, a partir da qual começa-se a descontruir todos os dogmas e medos seculares constituídos a partir do espírito religioso e dogmático no sentido de conduzir e dominar as civilizações.
O Renascimento reencontrou, sem dúvida, de certo modo, os valores do mundo greco-romano. Mas, ao mesmo tempo, tomou consciência do intransponivel fosso que o separava desses valores. Interpondo os espessos tempos obscuros entre a Antiguidade e a nova Idade de Ouro, relegou definitivamente para o passado como coisa já esgotada, uma civilização em que desejava inspirar-se, mas que não podia ressuscitar. O Renascimento, portanto, teve consciência histórica. Essa consciência era uma novidade e era sinal de uma mentalidade nova (Delumeau, 1994: 119).
Rossi (2001) demonstra quão qualitativo e cheio de adversidade fora essa passagem para uma nova forma de fazer ciência e pensar o mundo. Antes o mundo estava ligado intrinsicamente a uma filosofia teocêntrica ou a uma tentativa de explicar Deus pela filosofia, era outro paradigma. Ao observar o espaço físico, propriamente dito, a partir da invenção de alguns instrumentos, como a luneta e o microscópio, por exemplo, os filósofos/cientistas começam a questionar algumas certezas acerca do mundo físico e do mundo metafísico. Tais questionamentos, centrados em outros paradigmas, na verdade, à época, provocaram grandes reboliços nas esferas da política e do comando das sociedades, uma vez que as ditas certezas mantinham no poder aqueles que as determinavam. Vale lembrar que todo esse contexto social de valoração de uma filosofia teocêntrica constituiu, por muito tempo, o que Bachelard denominou de “obstáculos epistemológicos, uma vez que tais valores acabaram dificultando de certa forma o avanço da ciência.
Aquelas convicções que tendem a impedir toda a ruptura   e a descontinuidade no crescimento do saber científico e, por conseguinte, constituem obstáculos poderosíssimos para a afirmação de novas verdades” (Bachelard, aput Rossi. 2001: 29).
A tentativa de laicização da filosofia e da ciência teve, como principal embargo, a cultura teocêntrica. Rossi afirma que
a ciência moderna não nasceu no campo da generalização de observações empíricas, mas no terreno de uma análise capaz de abstrações, isto é, capaz de deixar o nível do sentido comum, das qualidades sensíveis e da experiência imediata (2001: 34).
Era essa a prática comum ao realizar a filosofia teocêntrica, uma vez que os raciocínios eram encaminhados para que se provasse a existência de Deus. Rossi aponta outro fator que dificultou o nascimento da ciência moderna: o desmerecimento do conhecimento mecânico em detrimento do conhecimento racional e dito científico. Esse desmerecimento tem a ver com “estrutura da sociedade e com a organização do trabalho” (2001: 39).
Rossi avança na reflexão no sentido de demonstrar como o conhecimento mecânico pode ser valorizado. Após questionar se “é possível que um homem possa chegar ao conhecimento dos efeitos naturais sem jamais ter lido livros escritos” (2001: 65), o autor apresenta uma série de exemplos em que homens simples, a partir da sua técnica, realizam descobertas importantes para o mundo científico.
No Ocidente, durante mais de mil anos, as figuras dominantes da cultura eram os santos, os monges, o professor, o militar, o médico, o artesão e o mágico. Depois passaram a integrar esse grupo os humanistas e os fidalgos. No século XVII inseriram-se nesse grupo o mecânico, o filósofo naturalista, o artista virtuoso ou livre empreendedor. Com a inserção desses novos membros, a ideia de conhecimento, o novo saber científico passa a colidir com o saber dos monges, dos escolásticos, dos humanistas e dos professores. Há uma forte oposição entre o conhecimento alquímico e o conhecimento dos mecânicos e dos engenheiros emerge, apesar desses dois tipos de conhecimento caminharem conjuntamente. O desenvolvimento das artes mecânicas e da ciência compõe o desenvolvimento ciência comprovando o que Hacking (2012) afirma em relação ao fato de a ciência não ser puramente lógica e racional.
Ao que parece há uma guerra pelo conhecimento. Assim como os monges antes pulverizavam a ideia de que há um conhecimento oculto não acessível a todos, os engenheiros, ao realizarem suas invenções, não davam a conhecer os meandros de suas descobertas, não pelas mesmas razões. Eles protegiam o conhecimento por uma questão econômica, os outros, ao que parece, protegiam por uma questão de poder. O mistério, para os místicos, era a justificativa para caracterizar as forças ocultas. Contudo busca-se desconstruir essa ideia do segredo como algo interessante, busca-se entender o segredo como um desvalor.
Em relação ao que move a ciência, observa-se que ela foi movida, nesses tempos, por artistas e práticos, pois eles realizavam suas produções pelo prazer, pela diversão, estimulados s projetarem algo novo que trouxesse conforto e diversão, não estavam envolvidos necessariamente com o progresso da ciência.
Interessante notar que o avanço das reflexões no campo da filosofia e da ciência se concretizam de tal forma que começam a desmoronar as crenças e os valores que sustentaram até aquele momento as ideologias teocêntricas. Muitos foram perseguidos, muitos foram condenados hereges. Os pensadores, aliando-se às novas tecnologias, buscavam explicar o mundo de uma forma mais concreta, a partir de observações empíricas do espaço e da natureza. O que se pode entender, a partir dos estudos, é que o desenvolvimento do pensamento matemático, da experiência no campo da física e dos ensaios alquímicos no campo da química fez um mundo teocêntrico ruir. Por mais que os filósofos tentassem justificar, explicar aspectos metafísicos por meio de experiências, fatos naturais, esse campo só pode ser desenvolvido no plano do raciocínio e para aqueles que acreditam no transcendental. Contudo, a ciência progride a partir do raciocínio matemático, das experiências empíricas e das observações naturais, as quais parecem não ser exaustivas. Há sempre algo novo a ser descoberto a partir de uma descoberta.
Observa-se, em Hacking (2012), uma preocupação em distinguir o processo evolutivo da ciência e o próprio fazer científico. Para construir essa distinção, ao discorrer sobre o progresso do conhecimento ele aponta para dois tipos de história: a externa e a interna. A interna seria aquela que é própria do fazer científico, talvez mais difícil de acompanhar em detrimento da quantidade de conhecimento que se agrega ao se constituir a ciência; a externa, destaque nesta reflexão, aponta para perspectiva histórica do ponto de vista social, político e econômico, compõe-se dos fatos sucessivamente que contribuíram de maneira interna para a evolução da ciência. Hacking (2012) ressalta que essas perspectivas estão intrinsicamente ligadas, uma se sobrepondo à outra, numa relação dialética. Não se produz conhecimento fora da história e não se produz conhecimento fora da ciência. “O conhecimento, em si mesmo, constitui uma entidade que evolui historicamente” (idem, 78).  
Considerando o contexto da revolução científica que começa a partir do século XV, Copérnico talvez tenha sido o precursor nessa conquista, porque ele, ao apontar as suas constatações, realizadas a partir de instrumentos mecânicos, revolucionou o estudo no campo da astronomia, fez ruir o céu que existia e criou uma polêmica em torno de suas teses. Interpretando outros filósofos, como Ptolomeu, Aristóteles, ele constrói uma nova teoria, contudo, receoso das controversas, humilde e humanista, ele a apresenta de forma mais reticente. Seguindo o caminho de Copérnico, Kepler, Tycho, Galilei, Giordano Bruno, Pascal, Descartes, Isaac Newton contribuíram significativamente para o desenvolvimento da ciência: alguns mais agressivos, outros mais reticentes, às vezes negando as teorias dos outros, às vezes, confirmando, mas sempre com a tenaz ideia de fazer a ciência avançar, mesmo quando a maioria deles estivera preso, por questões ideológicas, ao Cristianismo.
O auge desse momento acontece com as reflexões de Descartes, cujas ideias demarcam o que os estudiosos denominam de “revolução científica” e relacionam-se com o fazer científico de forma bastante objetiva. Tal objetividade é descrita no Discurso do Método em que se observa o passo a passo do pensar científico: a partir do momento em que se questiona a razão humana para educa-lo no processo de raciocinar sobre a verdade, buscando a melhor forma de compreender as ideias, deve-se colocar tudo em cheque, ou seja, deve-se duvidar de tudo.
A dúvida é o princípio de tudo inclusive da característica racional humana, uma vez que quem duvida duvida porque pensa, se se duvida, se pensa, se se pensa, existe-se, assim cria-se a máxima de Descartes: penso logo existo, cujo princípio é a dúvida. No Método cartesiano, há quatro etapas: questionamento das ideias – aquelas que passarem pelo crivo do questionamento, serem indubitáveis devem ser divididas, esquadrinhadas para melhor análise; a partir dessa divisão, deve-se realizar uma separação dessas ideias considerando as mais simples e as mais complexas, ou seja, para compreendê-las, é necessário buscar entender a gradação, a complexidade entre elas. O passo seguinte do Método de Descartes é realizar uma revisão de todo o processo realizando questionamento para se verificar as arestas acerca das questões postas inicialmente com o objetivo de garantir a segurança das respostas obtidas. Esse método tornou-se, na verdade, a base da Ciência Moderna.
A suposta revolução científica iniciada no século XV, que avançou no século XVI, acabou culminando, a partir de um processo de transformações tanto no pensamento, quanto nas formas de fazer a ciência, com as reflexões de Isaac Newton, o maior pensador do século XVIII. Nascido no fim do século XVII, Newton se destacou ao estudar a astronomia, a matemática, a alquimia, a ótica, a física. A partir de observações realizadas do espaço, por meio de instrumento específicos e por meio de cálculos matemáticos criados por ele mesmo, este pensador revoluciona a ciência propondo a teoria gravitacional do universo e outras teorias dentro da matemática. Muito ligado à ideologia cristã, Newton tenta provar matematicamente a existência de um Deus. Sem desmerecer todo o trabalho de Newton, é bom lembrar que ele foi sustentado por um avanço construído por outros precursores. Isso demonstra a perspectiva interna e externa do fazer científico estão realmente ligados.
Ao fim desse percurso histórico, na tentativa de mostrar como a filosofia, mesmo estando presa aos domínios da fé, foi se desprendendo da perspectiva  teocêntrica, destacam-se nomes importantes, que muitas vezes defenderam o cristianismo, a divindade e a bíblia, contudo acabaram por promover a laicização do pensamento filosófico e o desenvolvimento, paulatino, da ciência, ou seja, acabaram por promover uma mudança de paradigma nas formas de fazer ciência e filosofia, nas formas de compreender o mundo e o homem.

BIBLIOGRAFIA
DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Tradução Manuel Ruas. Lisboa: Editora Estampa, 1994.
HACKING, Ian. Representar e intervir: tópicos introdutórios de filosofia da ciência natural. Tradução Pedro Rocha de Oliveira. Rio de Janeiro: EdUerj, 2012.
ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Tradução de Antonio Angonese. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001.


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