terça-feira, 24 de março de 2020

Linguagem, mito e contos de fada: intrínsecas relações



O encantamento original da linguagem, do mito e dos contos de fada.


Por Rosa Amélia Silva

Resumo: Objetiva-se demonstrar, nesta reflexão, que o princípio do mito, do conto de fadas e da linguagem tem a mesma origem: a relação subjetiva do homem com o mundo. Tanto a origem da linguagem, a origem do mito quanto a origem do conto de fadas se estabelecem a partir do maravilhamento do homem com o mundo. Nesse sentido, ao estabelecer essas relações, podemos concluir que a efabulação é uma variável constante na vida humana, pois é a partir dela que o homem é capaz de maravilhar e criar a palavra que nomeia, o mito que explica o mundo e o conto de fada que explora a fantasia.


Para estabelecermos relação entre o maravilhamento da origem da linguagem, do mito e do conto de fadas, é preciso começar por aquilo que parece mais antigo: o maravilhamento que deu origem à linguagem. Para Benjamin (2017), existem muitos tipos de linguagem, mas pensar a linguagem verbal, para ele, é retomar o momento original da criação, pois “a língua, ou a linguagem, significa o princípio que se volta para a comunicação de conteúdos espirituais” (49/50). Tais conteúdos espirituais, para Cassirer (2011), é o que constitui as formas simbólicas.
A partir de Rousseau (2015), podemos compreender que a palavra nasce do encantamento, do maravilhamento do homem com o mundo. Por isso, a palavra é sempre metafórica, simbólica, mesmo quando usada no sentido mais objetivo. Rousseau considera que, se não fossem os sentimentos humanos, o homem talvez não tivesse desenvolvido a linguagem tal e qual ele a desenvolveu. João Guimarães Rosa também acreditava que o princípio da linguagem apresenta um caráter alquímico. Nessa perspectiva,  o nascimento da linguagem (da palavra em si) está ligado à expressão do sentimento humano e não a expressão das necessidades físicas, conforme se costuma pensar. Destaca-se que tal sentimento se relaciona ao encantamento do homem em relação aos fatos do mundo, a partir deles constituem-se as formas simbólicas.
Rousseau conjectura que “não foi a fome nem a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera que lhes (dos homens) arrancaram as primeiras vozes” (2015, 104). Para suprir a fome e a sede, o homem pode usar a linguagem corporal a partir da qual se realizam ações que provejam tais necessidades básicas. Tal especulação conduz para a ideia de que a linguagem promana da necessidade de expressão de subjetividades: das paixões humanas, “não se começou (a linguagem) pelo raciocinar, mas por sentir” (idem, 2015, 103), pelo encantar-se. Assim, toda linguagem, por mais social e convencional que seja, está ligada a sentimentos, a afetos, nas palavras de Benjamin (2015) e de Rosa (2006), às substâncias espirituais, ou seja, compõem formas simbólicas. Por isso, a linguagem e a sua compreensão sejam consideradas questões metafísicas porque estão associadas ao vir-a-ser do homem para além da sua condição física.
Por isso, cremos que o cerne de toda linguagem é a força do fazer, do grego poen, de que deriva a poesia. Assim, a poesia, os sentimentos e o encantamento estão intrinsecamente ligados. Antes de ser a expressão de sentimentos, a linguagem está associada ao desejo de comunicar ao outro o que se sente espiritualmente. Observa-se, dessa maneira, que a poesia, enquanto “fazer”, está ligada à experiência subjetiva, à capacidade de experimentar e revelar o sentido da vida, dos fatos, das coisas. Podemos especular que a conotação seja o princípio básico da linguagem humana, porque, ao pensar a palavra para nomear algo: ser, coisa, ação etc., o homem o faz sempre por analogias mobilizadas pelas paixões espirituais. Nas palavras de Benjamin (2017, 54), ao nomear as coisas, o homem comunica, pela língua, “sua própria essência espiritual”, “que lhe corresponde” (idem, 52), ou seja, os seus encantamentos e os seus encantos. As analogias são sempre metafóricas mesmo que objetivas, porque elas não são as coisas, mas representam as coisas, tal representação é análoga, simbólica.
O fazer linguístico nasce a partir dessa construção metafórica. Isso justifica a ideia de que a linguagem promana da e a poesia. Conforme informa Jolles (1930, 183), “a poesia é aquilo que passa em estado de pureza e sem alterações do coração para as palavras (sensibilidade e raciocínio); por conseguinte é algo que brota incessantemente de um impulso natural e é captado por uma faculdade inata”, logo podemos compreender que a poesia é o princípio da própria linguagem e, por conseguinte, da experiência que se torna memória coletiva e cultura. Poesia, experiência e cultura são intrínsecas ao ser humano, que, ao contar o que se vive, na tentativa de encontrar e atingir o outro pela comunicação, o faz também pela linguagem. “A poesia é a que maior afinidade tem com a inteligência e a que mais se aproxima do objeto da atividade teórica do espírito” (NUNES, 2016, 24). E considerando Cassirer, a poesia é a eclosão das formas simbólicas, dos conteúdos espirituais.
Tomando como ponto de partida a origem do mito, numa perspectiva mito-poético-literária, percebe-se que ele está ligada à essência da humanização. É a necessidade de expor a essência sentimental – espiritual/metafísica – que constrói socialmente o humano. O fazer poético está relacionado à experiência altruísta da humanização, dele nascem as formas simples, porque iniciáticas, de expressar um acontecimento, que estão ligadas à expressão da subjetividade humana, aos diversos sentires do ser que se humaniza ao se expressar pela linguagem: as narrativas de caráter oral, entre elas o mito e outros tipos de narrativas que exploram o fantástico, por exemplo, o conto de fadas.
A ascensão intelectual do homem faz com que ele avance para a socialização. Tal ascensão é marcada pelas formas tradicionais de narrar ou contar o mundo. Esse narrar o mundo demarca a origem da narrativa. No processo de ideação de uma palavra-conceito, da elaboração da palavra (sonora) que o represente, da exposição dessa palavra apontando para um conceito e para algo no mundo real, acontece o momento mágico da compreensão entre os seres humanos por meio de um código elaborado de forma simbólica: o mito. Nas palavras de Cassirer (2011, 19), “a mitologia, no sentido mais elevado da palavra, significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento e isto em todas as esferas possíveis da atividade espiritual”.
É um processo fantástico, que gera êxtase entre os homens, derivado do maravilhamento. Desse sentimento,  desenvolvem-se, simultaneamente, a linguagem verbal, a comunicação pela palavra e a criação dos mitos. A palavra não é o mundo, mas representa o mundo e o representa de forma subjetiva numa coletividade. É um processo metafísico. Por meio da palavra o homem tenta expressar aquilo que está no princípio da sua humanização. É um processo alquímico. Por meio da palavra o homem se humaniza, se socializa e transcende a si mesmo por meio da fantasia que, no princípio, compunha o real-mito-mágico. É o princípio da racionalização por meio da palavra.
Tolkien mesmo afirma que
A Fantasia é uma atividade humana natural. Certamente ela não destrói a Razão, muito menos insulta; e não abranda o apetite pela verdade científica nem obscurece a percepção dela. Ao contrário. Quanto mais arguta e clara a razão, melhor fantasia produzirá (TOLKIEN, 2013, 36).
A palavra é – simultaneamente – a mais antiga e mais atual tecnologia elaborada pela mente humana. E a mais encantadora, porque a palavra mesmo sendo objetiva é carregada de analogias, metáforas, subjetividades e simbologias. Cassirer afirma que a palavra – linguagem – constitui a estruturação sintética da consciência, pelo mundo da intuição, inicialmente o mundo dos sentidos ou das percepções sensoriais, é “uma maneira específica do espírito na sua atividade de criar e formar” (CASSIRER, 2004, 137). Baseado em Kant, Cassirer descreve o fenômeno da racionalidade humana: da experiência sensorial que garante a apreensão dos sentidos das coisas no mundo para o processo de representação dessa apreensão. O ato de representar, na mente, o mundo, os fatos, os objetos, revela, por si só, um ato de racionalidade.
Kant (apud Cassirer, 2004) põe em xeque as perspectivas racionalista e empirista para defender que todo conhecimento é racional até mesmo os advindos da empiria. Nesse sentido, o ser humano é, antes da experiência, um ser racional e por isso mesmo é capaz de racionalizar a experiência. Os conteúdos que o homem consegue racionalizar é de ordem empírica. O mundo se mostra ao homem que o conhece a partir dos fenômenos nos quais ele se envolve. Nesse sentido, apesar de parecer que há supremacia da razão, ela é alimentada pela experiência, ou seja, é o homem que atua sobre o mundo e não o mundo que atua sobre o homem. Cassirer (2004) amplia essa visão de Kant e afirma que o homem é simbólico, porque ele é racional, ou vice-versa, ele é racional porque consegue simbolizar. Para este filósofo, todos as formas de conhecimento são simbólicas, desde a lógica até o conhecimento empírico, que passa a ser compreendido não porque é experienciado, mas porque é refletido, simbolizado. O filósofo, então, compreende que “a realidade é uma compreensão simbólica” (Fernandes, 2000), a racionalidade não se aplica somente ao fazer científico, como também ao fazer religioso, mítico. Segundo Cassirer (2011, 21),
não só o mito, a arte e a linguagem, mas até o conhecimento teórico chegam a ser mera fantasmagoria, pois nem este pode refletir a autêntica natureza das coisas, tais como são, devendo delimitar sua essência em conceitos.
Na criação do mito, tal racionalidade não está desprendida da subjetividade, muito menos da capacidade imaginativa. Nas palavras de Cassirer, (2004, 81), “mito e linguagem estão em constante contato recíproco”, seus conteúdos portam e condicionam um ao outro mutuamente. Explica ele que “toda designação linguística é essencialmente ambígua e, nesta ambiguidade, nesta “paronímia” das palavras está a fonte primeva de todos os mitos” (idem, 2011, 18). Daí se compreende que o mesmo maravilhamento que rege e dá origem à palavra concebe o mito. O filósofo em questão especula que a força mítico-mágica da linguagem “só vem à tona quando aparece na forma de som articulado” (CASSIRER, 2004, 81). A expressão é a concretização da força mítico-mágica da palavra, que enquanto não manifesta é apenas pensamento.
A palavra enquanto nomeadora do mundo, dos objetos, dos seres está para além da representação. Ela revela a essência em si da coisa nomeada. O mito é essa coincidência de representação e essência da coisa em si nomeada. O mito é, pela palavra, a exteriorização de uma essência interior, que o nome das divindades mítico-religiosas condensa e encerra em si a essência do seu caráter. Cassirer defende que, no mundo mítico, a apreensão do pensamento, da sua essência, acontece a partir do conceito do objeto e a partir do objeto.
Nessa relação, o mito e linguagem estão intrinsecamente ligados. A criação de um determina a criação do outro. E os contos de fadas? A relação é tão próxima ou mais distante? Tolkien, ao descrever a origem dos contos de fadas, realiza uma reflexão bem interessante no que concerne à produção cultural humana ao longo dos séculos: ele afirma que os contos que se contam hoje nada mais são do que um caldeirão de sopa, “designo a história tal como é servida por seu autor ou narrador” (TOLKIEN, 2013, 17)  e na composição dessa sopa há os “ossos”, que são “suas fontes ou seu material” (idem, ibidem) e o caldeirão de sopa é a mixórdia histórica em torno da qual o homem, com o passar do tempo, foi reunindo figuras, personagens, imagens, ideias para compor suas histórias. O homem, que narrador, compõe as mãos que cozem e elas são importantes, porque as suas escolhas para compor o caldeirão de sopa não são às cegas. Segundo Tolkien, ao narrar histórias,
a relação entre o “elemento do conto de fadas” e os deuses, reis e homens anônimos, ilustrando (creio) a opinião de que esse elemento nem se eleva nem cai, mas está lá, no Caldeirão da História, esperando pelas grandes figuras do Mito e da História, e por Ele ou Ela ainda sem nome, esperando pelo momento de serem lançados no ensopado em lenta fervura, um por um ou todos juntos, sem levar em conta categoria social nem precedência (TOLKIEN, 2013, 22).
Tolkien afirma que foi nos contos de fadas que ele primeiro pressentiu “a potência das palavras, e o prodígio das coisas, como pedra, madeira, ferro; árvore e grama; casa e fogo; pão e vinho” (idem, ibidem, 39). Talvez, para o homem atual, distante das mitologias clássicas, o conto de fadas seja realmente o primeiro contato com o maravilhamento, com a consciência do poderio da palavra – toda ela encantada por excelência. Assim como a palavra inicialmente esteve ligada à expressão das paixões, “os contos de fadas claramente não envolviam primordialmente a possibilidade, mas sim a desejabilidade. Se despertavam desejo, satisfazendo-o ao mesmo tempo que muitas vezes o atiçavam insuportavelmente, tinham sucesso” (TOLKIEN, 2013, 280).
Logo, para se despertar para os contos, temos que mergulhar na mixórdia da história, no caldeirão de sopa em que se tornaram as práticas sociais da linguagem e dos fatos, temos que saber ler os ossos que constituem esse “caldeirão de sopa” (TOLKIEN, 2013). E veja bem, a metáfora “ossos”, com a qual Tolkien se refere aos contos, é bastante significativa, uma vez que os ossos, “num caldeirão de sopa”, constituem a parte mais consistente. Então no caldeirão cultural, os contos de fada são a parte consistente a partir da qual se transmite conhecimento, sabedoria, narrativas exemplares e fantásticas. O maravilhamento constante só pode ocorrer pela palavra, que é auto-responsável pela ebolição de si e tudo o que é simbólico. As três coisas – invenção independente, herança e difusão – evidentemente tiveram seu papel na produção da intrincada teia da História (TOLKIEN, 2013, 18). A história dos contos de fadas provavelmente é mais complexa que a história física da raça humana, e tão complexa quanto a história da linguagem humana e dos mitos.

BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas cidades, Editora 34, 2017.
CASSIRER, Ernest.  “A filosofia das formas simbólicas: segunda parte”. In: O pensamento mítico. Tradução de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 
_____. Linguagem e mito. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011.
FERNANDES, Vladimir.Cassirer: a filosofia das formas simbólicas”. Capítulo 1 da dissertação de Mestrado em Filosofia – Ernst Cassirer: o mito político como técnica de poder no nazismo – defendida na PUC SP em 2000. file:///C:/Users/Rosa%20Amélia/Desktop/cassirer.pdf (consultado em 28/10/19).
JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1930.
NUNES, Benedito. Introdução à Filosofia da Arte. São Paulo: Editora Loyola, 2016.
ROSA, João Guimarães. “Guimarães Rosa por ele mesmo” In: Cadernos de Literatura Brasileira: João Guimarães Rosa. Instituto Moreira Salles, 2006.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fulvia M. L. Moretto. São Paulo: Unicamp Editora, 2015.
TOLKIEN, J. R. R. Árvore e Folha. Tradução de Ronald Eduard Kyrmse. São Paulo: Martins fontes, 2013.



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