O encantamento original
da linguagem, do mito e dos contos de fada.
Por Rosa Amélia Silva
Resumo: Objetiva-se demonstrar, nesta reflexão,
que o princípio do mito, do conto de fadas e da linguagem tem a mesma origem: a
relação subjetiva do homem com o mundo. Tanto a origem da linguagem, a origem
do mito quanto a origem do conto de fadas se estabelecem a partir do
maravilhamento do homem com o mundo. Nesse sentido, ao estabelecer essas
relações, podemos concluir que a efabulação é uma variável constante na vida
humana, pois é a partir dela que o homem é capaz de maravilhar e criar a
palavra que nomeia, o mito que explica o mundo e o conto de fada que explora a
fantasia.
Para estabelecermos relação
entre o maravilhamento da origem da linguagem, do mito e do conto de fadas, é
preciso começar por aquilo que parece mais antigo: o maravilhamento que deu
origem à linguagem. Para Benjamin (2017), existem muitos tipos de linguagem,
mas pensar a linguagem verbal, para ele, é retomar o momento original da
criação, pois “a língua, ou a linguagem, significa o princípio que se volta
para a comunicação de conteúdos espirituais” (49/50). Tais conteúdos
espirituais, para Cassirer (2011), é o que constitui as formas simbólicas.
A partir de Rousseau (2015),
podemos compreender que a palavra nasce do encantamento, do maravilhamento do
homem com o mundo. Por isso, a palavra é sempre metafórica, simbólica, mesmo quando
usada no sentido mais objetivo. Rousseau considera que, se não fossem os
sentimentos humanos, o homem talvez não tivesse desenvolvido a linguagem tal e
qual ele a desenvolveu. João Guimarães Rosa também acreditava que o princípio
da linguagem apresenta um caráter alquímico. Nessa perspectiva, o nascimento da linguagem (da palavra em si)
está ligado à expressão do sentimento humano e não a expressão das necessidades
físicas, conforme se costuma pensar. Destaca-se que tal sentimento se relaciona
ao encantamento do homem em relação aos fatos do mundo, a partir deles
constituem-se as formas simbólicas.
Rousseau conjectura que “não
foi a fome nem a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera que lhes (dos
homens) arrancaram as primeiras vozes” (2015, 104). Para suprir a fome e a
sede, o homem pode usar a linguagem corporal a partir da qual se realizam ações
que provejam tais necessidades básicas. Tal especulação conduz para a ideia de
que a linguagem promana da necessidade de expressão de subjetividades: das
paixões humanas, “não se começou (a linguagem) pelo raciocinar, mas por sentir”
(idem, 2015, 103), pelo encantar-se. Assim, toda linguagem, por mais social e
convencional que seja, está ligada a sentimentos, a afetos, nas palavras de
Benjamin (2015) e de Rosa (2006), às substâncias espirituais, ou seja, compõem
formas simbólicas. Por isso, a linguagem e a sua compreensão sejam consideradas
questões metafísicas porque estão associadas ao vir-a-ser do homem para além da
sua condição física.
Por isso, cremos que o cerne
de toda linguagem é a força do fazer, do grego poen, de que deriva a poesia. Assim, a poesia, os sentimentos e o
encantamento estão intrinsecamente ligados. Antes de ser a expressão de
sentimentos, a linguagem está associada ao desejo de comunicar ao outro o que
se sente espiritualmente. Observa-se, dessa maneira, que a poesia, enquanto
“fazer”, está ligada à experiência subjetiva, à capacidade de experimentar e
revelar o sentido da vida, dos fatos, das coisas. Podemos especular que a
conotação seja o princípio básico da linguagem humana, porque, ao pensar a
palavra para nomear algo: ser, coisa, ação etc., o homem o faz sempre por
analogias mobilizadas pelas paixões espirituais. Nas palavras de Benjamin (2017,
54), ao nomear as coisas, o homem comunica, pela língua, “sua própria essência
espiritual”, “que lhe corresponde” (idem, 52), ou seja, os seus encantamentos e
os seus encantos. As analogias são sempre metafóricas mesmo que objetivas,
porque elas não são as coisas, mas representam as coisas, tal representação é
análoga, simbólica.
O fazer linguístico nasce a partir dessa
construção metafórica. Isso justifica a ideia de que a linguagem promana da e a
poesia. Conforme informa Jolles (1930, 183), “a poesia é aquilo que passa em
estado de pureza e sem alterações do coração para as palavras (sensibilidade e
raciocínio); por conseguinte é algo que brota incessantemente de um impulso
natural e é captado por uma faculdade inata”, logo podemos compreender que a poesia
é o princípio da própria linguagem e, por conseguinte, da experiência que se
torna memória coletiva e cultura. Poesia, experiência e cultura são intrínsecas
ao ser humano, que, ao contar o que se vive, na tentativa de encontrar e
atingir o outro pela comunicação, o faz também pela linguagem. “A poesia é a
que maior afinidade tem com a inteligência e a que mais se aproxima do objeto
da atividade teórica do espírito” (NUNES, 2016, 24). E considerando Cassirer, a
poesia é a eclosão das formas simbólicas, dos conteúdos espirituais.
Tomando como ponto de partida a origem do mito,
numa perspectiva mito-poético-literária, percebe-se que ele está ligada à
essência da humanização. É a necessidade de expor a essência sentimental –
espiritual/metafísica – que constrói socialmente o humano. O fazer poético está
relacionado à experiência altruísta da humanização, dele nascem as formas
simples, porque iniciáticas, de expressar um acontecimento, que estão ligadas à
expressão da subjetividade humana, aos diversos sentires do ser que se humaniza
ao se expressar pela linguagem: as narrativas de caráter oral, entre elas o
mito e outros tipos de narrativas que exploram o fantástico, por exemplo, o
conto de fadas.
A ascensão intelectual do homem faz com que ele
avance para a socialização. Tal ascensão é marcada pelas formas tradicionais de
narrar ou contar o mundo. Esse narrar o mundo demarca a origem da narrativa. No
processo de ideação de uma palavra-conceito, da elaboração da palavra (sonora)
que o represente, da exposição dessa palavra apontando para um conceito e para
algo no mundo real, acontece o momento mágico da compreensão entre os seres
humanos por meio de um código elaborado de forma simbólica: o mito. Nas
palavras de Cassirer (2011, 19), “a mitologia, no sentido mais elevado da
palavra, significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento e isto em
todas as esferas possíveis da atividade espiritual”.
É um processo fantástico, que
gera êxtase entre os homens, derivado do maravilhamento. Desse sentimento, desenvolvem-se, simultaneamente, a linguagem
verbal, a comunicação pela palavra e a criação dos mitos. A palavra não é o
mundo, mas representa o mundo e o representa de forma subjetiva numa
coletividade. É um processo metafísico. Por meio da palavra o homem tenta
expressar aquilo que está no princípio da sua humanização. É um processo
alquímico. Por meio da palavra o homem se humaniza, se socializa e transcende a
si mesmo por meio da fantasia que, no princípio, compunha o real-mito-mágico. É
o princípio da racionalização por meio da palavra.
Tolkien mesmo afirma que
A
Fantasia é uma atividade humana natural. Certamente ela não destrói a Razão,
muito menos insulta; e não abranda o apetite pela verdade científica nem
obscurece a percepção dela. Ao contrário. Quanto mais arguta e clara a razão,
melhor fantasia produzirá (TOLKIEN, 2013, 36).
A palavra é – simultaneamente – a mais antiga e mais atual
tecnologia elaborada pela mente humana. E a mais encantadora, porque a palavra
mesmo sendo objetiva é carregada de analogias, metáforas, subjetividades e simbologias.
Cassirer
afirma que a palavra – linguagem – constitui a estruturação sintética da
consciência, pelo mundo da intuição, inicialmente o mundo dos sentidos ou das
percepções sensoriais, é “uma maneira específica do espírito na sua atividade
de criar e formar” (CASSIRER, 2004, 137). Baseado em Kant, Cassirer descreve o
fenômeno da racionalidade humana: da experiência sensorial que garante a
apreensão dos sentidos das coisas no mundo para o processo de representação
dessa apreensão. O ato de representar, na mente, o mundo, os fatos, os objetos,
revela, por si só, um ato de racionalidade.
Kant (apud Cassirer, 2004) põe em xeque as perspectivas
racionalista e empirista para defender que todo conhecimento é racional até
mesmo os advindos da empiria. Nesse sentido, o ser humano é, antes da
experiência, um ser racional e por isso mesmo é capaz de racionalizar a
experiência. Os conteúdos que o homem consegue racionalizar é de ordem
empírica. O mundo se mostra ao homem que o conhece a partir dos fenômenos nos
quais ele se envolve. Nesse sentido, apesar de parecer que há supremacia da
razão, ela é alimentada pela experiência, ou seja, é o homem que atua sobre o
mundo e não o mundo que atua sobre o homem. Cassirer (2004) amplia essa visão
de Kant e afirma que o homem é simbólico, porque ele é racional, ou vice-versa,
ele é racional porque consegue simbolizar. Para este filósofo, todos as formas
de conhecimento são simbólicas, desde a lógica até o conhecimento empírico, que
passa a ser compreendido não porque é experienciado, mas porque é refletido,
simbolizado. O filósofo, então, compreende que “a realidade é uma compreensão
simbólica” (Fernandes, 2000), a racionalidade não se aplica somente ao fazer
científico, como também ao fazer religioso, mítico. Segundo Cassirer (2011,
21),
não só o mito, a arte e a linguagem, mas até o conhecimento
teórico chegam a ser mera fantasmagoria, pois nem este pode refletir a
autêntica natureza das coisas, tais como são, devendo delimitar sua essência em
conceitos.
Na
criação do mito, tal racionalidade não está desprendida da subjetividade, muito
menos da capacidade imaginativa. Nas palavras de Cassirer, (2004, 81), “mito e
linguagem estão em constante contato recíproco”, seus conteúdos portam e
condicionam um ao outro mutuamente. Explica ele que “toda designação
linguística é essencialmente ambígua e, nesta ambiguidade, nesta “paronímia”
das palavras está a fonte primeva de todos os mitos” (idem, 2011, 18). Daí se
compreende que o mesmo maravilhamento que rege e dá origem à palavra concebe o
mito. O filósofo em questão especula que a força mítico-mágica da linguagem “só
vem à tona quando aparece na forma de som articulado” (CASSIRER, 2004, 81). A
expressão é a concretização da força mítico-mágica da palavra, que enquanto não
manifesta é apenas pensamento.
A palavra enquanto nomeadora do mundo, dos objetos, dos seres
está para além da representação. Ela revela a essência em si da coisa nomeada.
O mito é essa coincidência de representação e essência da coisa em si nomeada.
O mito é, pela palavra, a exteriorização de uma essência interior, que o nome
das divindades mítico-religiosas condensa e encerra em si a essência do seu
caráter. Cassirer defende que, no mundo mítico, a apreensão do pensamento, da
sua essência, acontece a partir do conceito do objeto e a partir do objeto.
Nessa relação, o mito e linguagem estão intrinsecamente
ligados. A criação de um determina a criação do outro. E os contos de fadas? A
relação é tão próxima ou mais distante? Tolkien, ao
descrever a origem dos contos de fadas, realiza uma reflexão bem interessante
no que concerne à produção cultural humana ao longo dos séculos: ele afirma que
os contos que se contam hoje nada mais são do que um caldeirão de sopa,
“designo a história tal como é servida por seu autor ou narrador” (TOLKIEN, 2013, 17) e na
composição dessa sopa há os “ossos”, que são “suas fontes ou seu material” (idem,
ibidem) e o caldeirão de sopa é a mixórdia histórica em torno da qual o homem,
com o passar do tempo, foi reunindo figuras, personagens, imagens, ideias para
compor suas histórias. O homem, que narrador, compõe as mãos que cozem e elas
são importantes, porque as suas escolhas para compor o caldeirão de sopa não
são às cegas. Segundo Tolkien, ao narrar histórias,
a
relação entre o “elemento do conto de fadas” e os deuses, reis e homens
anônimos, ilustrando (creio) a opinião de que esse elemento nem se eleva nem
cai, mas está lá, no Caldeirão da História, esperando pelas grandes figuras do
Mito e da História, e por Ele ou Ela ainda sem nome, esperando pelo momento de
serem lançados no ensopado em lenta fervura, um por um ou todos juntos, sem
levar em conta categoria social nem precedência (TOLKIEN, 2013, 22).
Tolkien afirma que foi nos contos de fadas que ele
primeiro pressentiu “a potência das palavras, e o prodígio das coisas, como
pedra, madeira, ferro; árvore e grama; casa e fogo; pão e vinho” (idem, ibidem,
39). Talvez, para o homem atual, distante das mitologias clássicas, o conto de
fadas seja realmente o primeiro contato com o maravilhamento, com a consciência
do poderio da palavra – toda ela encantada por excelência. Assim como a palavra
inicialmente esteve ligada à expressão das paixões, “os contos de fadas
claramente não envolviam primordialmente a possibilidade, mas sim a
desejabilidade. Se despertavam desejo, satisfazendo-o ao mesmo tempo que muitas
vezes o atiçavam insuportavelmente, tinham sucesso” (TOLKIEN,
2013, 280).
Logo, para se despertar para os contos, temos
que mergulhar na mixórdia da história, no caldeirão de sopa em que se tornaram
as práticas sociais da linguagem e dos fatos, temos que saber ler os ossos que
constituem esse “caldeirão de sopa” (TOLKIEN, 2013). E veja bem, a metáfora
“ossos”, com a qual Tolkien se refere aos contos, é bastante significativa, uma
vez que os ossos, “num caldeirão de sopa”, constituem a parte mais consistente.
Então no caldeirão cultural, os contos de fada são a parte consistente a partir
da qual se transmite conhecimento, sabedoria, narrativas exemplares e
fantásticas. O maravilhamento constante só pode ocorrer pela palavra, que é
auto-responsável pela ebolição de si e tudo o que é simbólico. As três coisas –
invenção independente, herança e difusão – evidentemente tiveram seu papel na
produção da intrincada teia da História (TOLKIEN, 2013, 18). A história dos
contos de fadas provavelmente é mais complexa que a história física da raça
humana, e tão complexa quanto a história da linguagem humana e dos mitos.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN,
Walter. Escritos sobre mito e linguagem.
Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas cidades,
Editora 34, 2017.
CASSIRER,
Ernest. “A filosofia das formas
simbólicas: segunda parte”. In: O
pensamento mítico. Tradução de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
_____.
Linguagem e mito. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011.
FERNANDES, Vladimir. “Cassirer: a filosofia das formas simbólicas”.
Capítulo 1 da dissertação de Mestrado em Filosofia – Ernst Cassirer: o mito político como técnica de poder no
nazismo – defendida na PUC SP em 2000. file:///C:/Users/Rosa%20Amélia/Desktop/cassirer.pdf (consultado em 28/10/19).
JOLLES,
André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1930.
NUNES,
Benedito. Introdução à Filosofia da Arte. São Paulo: Editora Loyola, 2016.
ROSA,
João Guimarães. “Guimarães Rosa por ele mesmo” In: Cadernos de Literatura Brasileira: João Guimarães Rosa. Instituto
Moreira Salles, 2006.
ROUSSEAU,
Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das
línguas. Tradução de Fulvia M. L. Moretto. São Paulo: Unicamp Editora,
2015.
TOLKIEN,
J. R. R. Árvore e Folha. Tradução de Ronald
Eduard Kyrmse. São Paulo: Martins fontes, 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário